Sabiá cantava chuva. Setembrina. Chuva de renovação.
_ Sabiá macho tá chamano namoru…
_ Agora?
_ Vem terra úmida pela frenti, meu fio! Terra úmida tem minhoca!
_ Crendice, pai! Sabiá comi di um tudo!
_ Sabiá chama chuva, fio! Chama, sim! Ele avisa das nuvi prenhe. Bojuda di água. Ele sabi que tem mais chanci para os fiote.
Na ânsia pela chuva da virada, o povo insistia na petição: “Trabáia, sabiá! Trabáia! Chama as água! Água di limpá as arma.”; “Povu incardidu di bestêra, sô! Trabáia! Chama a dona chuvada! Avisa qui nóis num tá mais si aguentano de percisão! Canta, sabiá! Canta!”
A seca batia continência à porta das casas. Entrava pelas frestas esfareladas. Ressequidas. Virava assombração:
_ Mãeeeeeeeeeeee!! Acode! Acodee! Tem “visági” nu meu quartuuuuu!
_ Nada, fia! É a lua bateno no buraco qui seu pai não barriô. Dromi, minina.
Sem virar o corpo que doía, Amantina lembra o marido:
_ Adelsu! Tem di barriá aquelis buracu. Di hora qui lhi falu, homi!
_ Amanhã eu alembru!
_ Amanhã tem lua cheia di um tudu!
_ I daí, muié?
_ Daí qui vai descê dragão, homi! Vai barriá!
Não foi! Adelson calculava os dias para a virada. Cantoria de sabiá tinha fundamento. Esgaravatava o cheiro das águas condensadas em flocos almofadados. Chamava namoro. Época de reprodução.
Algumas semanas para a primavera. A tensão arrepiando a natureza já crespa de potências. Guardadas. Esperançosas. Em ponto de ruptura. “Primo vere”. Primeiro verão. Depois de tantas esperas. Tempo de preparar a terra e vingar sementes. Tempos difíceis cobravam estratégias e práticas.
_ Éh, primu Adelsu! Nóis fomu tudu enganadu!
_ Fomu não! Tava na cara du boi!
_ Primu, ansim tu mi chama di burru!
_ Nada! Os burru são muitu du inteligenti. Quandu diz não, é não, primu!
_ Pois óia, a casca já tava podri.
_ Não só a casca, primu Vandu! Não só a casca!
_ I a genti acreditô nas promessa… água traiçoêra, sô!
_ Água não trai, primu. Já lhi dissi! Nóis qui num sabi ovi a voz da correnteza!
_ Qué isso, Adelsu? Somu bicho du matu di nascimentu e luta! I quem daqui não sabi?
_ Vô lhi conta um caso prá mostrá u qui digu…
Adelson, homem tarimbado nas amostras da vida, não guardava para si os aprendizados. Costumava dizer que aprendera a respirar debaixo d’água. Riam das manobras linguísticas do amigo, especialmente os que não reconhecim os “desvios” nas figuras construídas. Ele tinha muitas. Figuras e figurões. Repertório inigualável.
_ Ingua… láver não, Adelsu. A palavra di ordi é… aquela tar di coisa di homi qui… qui num nega fogu!
_ Me anegu arrepeti! Me anegu! Vamu ao casu.
Adelson antecipou ao primo e aos chegantes que, da verdade verdadeira, estava o seu avô por testemunha. Testemunha visível e “sobrevivida” do risco de rio. Melhor, “sobrevivida” depois de enfrentar a “casca de rio”. Um fenômeno pouco conhecido fora da população ribeirinha.
_ A genti num tem rio aqui, primu.
_ Mas tinha! Tinha e vô prová!
O caso subiu e desceu íngremes ladeiras narrativas. Voz afetada pela tensão do fato e do acontecido. Verbos enredados nas linhas do avô. Homem tratado pela vida. Sem rascunho. Nem cópia. Pois de um, a cada vez, se fazia outro. Novo em folha! É a tal da “adescendênça”. Geração chamando geração.
_ Tá! O que feiz o seu avô?
_ Meu avô abriu a casca de rio.
_ Ói, somu tudo uns capiau, primo. Ma… sabemu qui riu num tem casca!
_ Tem! E adescubrí istu sarvô u meu avô!
Então, o caso ganhou ouvidos. Fornido a água e lama, o Rio dos Vivos tinha nascente visível. Começava ali, não muito longe de onde se encontravam. Borbulhava por entre rochas e pedras e mais rochas e outras pedras. Parecia nascer fininho. Só parecia. Logo adiante, quando as águas envasilhavam na primeira bacia, as borbulhas ganhavam velocidade e volume. A água mostrava força. E ritmo. E persistência. Abria caminho separando a terra em duas margens. O avô herdara a terra da esquerda. Mais rica. Fértil. Umedecida pelas línguas do rio. Plantava milho. As mandiocas pareciam…
_ E a tal da casca?
A tal da casca era um fenômeno muito peculiar. A prova de que as águas não traem. Envolvem. Desviam. Enchem, mas não traem.
_ Elas seguim um cursu.
_ Qui cursu, primu?
_ O du leitu, Aderbardu! O du leitu!!!
_ Ah! Tá! Segui…
O leito do Rio dos Vivos, assim chamado nas redondezas, era feito de curvas profundas e angulosas. Muitas curvas para um único rio. Os ribeirinhos costumavam contar que, dali, ninguém saíra vivo. O fundo não tinha fundo! Fazia sumir água e homem.
_ Ôh, primu? Si ninguém saía vivu, pruque du nomi?
_ Aderbardu, num era “vivu” di arrespirá. Era “vivu” di intendê as coisa, homi!
_ Ah!
Era tão importante entender o rio que o avô, interessado em conhecer o “fundo dos fundos” daquelas águas, sentava à sua cabeceira duas vezes ao dia. Perguntava e ouvia. Ouvia e anotava na mente cada sussurro do rio. Cada “chuazinho” que respingava para fora do leito. Cada ruga nas faces da água. Com o tempo, aprendeu a falar “liquidês”.
_ Qui língua é essa?
_ A língua du riu, Vardomiro. Tu num tá aprestano …
_ Tô! Tô! Continua!
O avô contava que essa língua era redonda. Suave. Deslizante. Parecia mel “recém-panhado”. Flor-de-quaresmeira em manhã de domingo. Antes da missa.
_ É…é… a pranta lá dos cofris!
_ Qui cofris, Aderbardu? Qui cofris?
_ Lá, dus homi!
_ Da capitar?
_ I é… ma… sem a missa. Sem a missa!
O avô dava conta da gramática do rio. Conhecia as palavras de trás para a frente.
_ I di frenti?
_ Eli conhecia, primu! Conhecia bem!
_ Ah! Vai…
De tanto conversar com rio, o avô foi largando a plantação. Quanto mais prosa desenvolvia, mais desejava prosear. Os dois falavam a mesma língua. E ambos guardavam histórias.
Foi até que, em um amanhecer sem dono, o avô foi chamado às pressas. Algo se passava naquelas curvas perigosas. Um som estranho ecoava pelas margens. Rasgava a terra úmida. Cobria a vegetação de susto e arrependimentos. Parecia pio de passarinho caído do ninho. Mas era alto e forte como o mugido de um boi em lamento. (Continua)
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