Casca de rio – parte II

Ivane Laurete Perotti

O barulho entrelaçara o rio em nós de cuia. Altos. Carpidura nunca antes registrada. O avô de Adelson reconhecia urgência no lamento sem capricho.

_ Craro qui riu chora, primu! Chora e dirruba as lárguima nus lombu da terra.

Cedia a plantação. Curva pelo medo, desobedecia ao vento. Lambadas de ar frio dançavam sobre a face líquida. Alguns ribeirinhos juraram ver as patas do éolo. Abertas. Ângulo de corrida. Dança desgovernada! Riscando cascos no lençol d’água que permanecia imóvel. Parado. Petrificado. Nem um “chuazinho” beliscando as margens. Nenhuma rocha molhada. Água parada. Paradinha. Nada! Um rio seco se mostrava aos olhos dos incrédulos.

_ Num queru lhi atrapaiá, primu. Ma… riu secu? Tem dissu não, homi!

_ Tem i eu vô prová!

_ Sei não…

_ A água espeiuda…

Parecia gelo lustrado à mão de cera. Verniz de rio era sinal de …

_ Apocalipissi! Só podi!

Algo acontecia. Fixo, o rio não dava mostras das águas fundas que engoliam curvas e pedras. A noite em retiro deixou cair um lamento. Vários. De dentro da lamentação, um nevoeiro sem precedentes engoliu as encostas. As matas e casas mais próximas. Aves da madrugada se dividiram na discussão: Dia! Noite! Noite! Dia! Madrugava o improvável.

_ Foi aí qui meu avô se adicidiu-se di colocá u pé naqueli eispeio. Espeiu quebra.

_ Quebra!

Pois não quebrou. Aquele espelho estava seco como a fé do povo e…

_ A conscênça dus homi!

_ Di quais, cumpadi?

_ Daquelis qui adeviam di tê!

A reação do avô foi testemunhada por todos: “Deusmilivriiguardi!!! O riu morreu!”. Falam que a voz atravessou o nevoeiro e foi parar na cidade. Da cidade para a capital. Da capital para outra capital. Virou notícia da noite para o dia. Da madrugada para o resto do mundo.

_ Ô, ô primu..i… i a tar língua arredonda feitu mel “recém-panhadu”?

_ Nada! Nadica! Só u vaziu das gramática. Meu avô tentou di um tudu! Falô! Preguntô! Iscuitô! Di nada valeu! Só si uvia aqueli baruio di choru.

_ I era di choru memu?

_ Diz qui era! Era…

…o som mais triste que já se ouvira. Repetia-se, sem trégua. Um vulcão adormecido? Cavernas acústicas? Fim dos tempos? Ninguém provava. Desaprovavam sim, a insistência dos ribeirinhos que teimavam em permanecer às margens secas do leito de água dura. Foi em um momento desses, quando a tensão já enveredava para o fantástico que o avô de Adelson se decidiu.  Sem respostas do rio, e há dias temendo pela distância entre ambos, quebrou as barreiras plantadas pelos “seguranças de alguma coisa para outras”. Coisas! Abertas para o duvidoso, o povoado só sabia rezar para todos os santos. Santeiros. Padres. Padeiros.

Entre os curiosos, moviam-se os empreiteiros do azar. Tinham planos. Ideias de rendimentos a baixo custo. Era a exploração do inexplicável. Alguns entendiam de mineração. Outros, de onde minerar. E havia aqueles que lucravam dos dois lados. Quem quer que fosse, agora visitava as terras do Rio dos Vivos de Água Seca.

_ Seca i dura, né, primu?

_ Issu…ma, os homi num si atrevia a pisá nela.  Menu u meu avô!

A voz de Adelson converteu-se em cascata. Líquidas emoções atravessaram a caixa de ressonância. Boca aberta pelo esforço. Dentes entrecerrados. Língua umedecendo os lábios trêmulos. Olhos de orgulho e temor. Um verdadeiro herói não esconde o medo. Refuta a covardia. Mas dá o passo que faz a frente virar de lado. E vira! Foi o que fez o amigo do rio. Falador de “liquidês”. Conhecedor das gramáticas não escritas. Interlocutor das águas em aflição.

Antes que explodissem a inocência daquela nascente, o avô se embrenhou pela face ressequida do rio. Seca de tudo. Lisa como vidro depois de frio. Vidraça riscada na terra de tantos pais. Filhos.  Lisa! Lisa como os poemas que se faziam janelas da catedral.

Um pé à frente do outro. Pisava em ovos. Não exatamente! Pisava em vidro.  Opaco, se olhado de cima. Denso sob o peso do homem. Curvado por dobras de terra. Perigosas frações de círculos. Curvas profundas. Abruptas. Sinuosas. Negava-lhe a palavra de volta. Sem volta certa, ele se foi. Pelos lados da margem mais perigosa. Aquela que fazia sumir gentes, bois e pessoas. Um perigo!

O avô caminhava descalço. Calça velha. Pano arregaçado até os joelhos. Os pés grossos de calos e tentativas carregava um homem desesperado. Um depois do outro. Em marcha de caracol sem patas e vários pés grudados ao corpo. Movente. Grudento. Uma contração após a outra. O suor escorrendo do cérebro para o corpo. Do coração para os braços. Para os pés. Caiu diversas vezes. Escorregava nas poças salgadas que desciam de suas pernas. Velhas. Cansadas. Pernas de operador de plantação. Cuidador da terra. Vivente dos campos de pedra. Um passo. Oração. Cruz em credo. Credo! Emudecera o rio falador. Gaguejava o “liquidês” na boca daquele homem. Nenhum diálogo  flutuando motivos. Audível, o som em repetida agonia. O choro bramindo cóleras. Dores. Histórias tragadas pelo mais côncavo dos ostracismos ininterruptos. Anos de repetição.

Ofegante, chegara à temida curva. Sumidouro dos desatentos. Alguns vizinhos gritavam das margens. Outros acenavam. Os seguranças seguravam… O quê? Jamais perguntou. Cabeça nos pés, andou até se estender inteiro nas costas do rio.

_ Não era rostu, primu?

_ … faci!

_ Tá…vai!

Corpo estirado sobre o leito duro e seco, o avô entabulou conversa na língua aprendida com paciência e dedicação. Enciumara-se a avó. Perda de tempo. O avô só se preocupava em gravar as novas palavras. Frases inteiras. Verbos de nadar. Não sabia! Não sabia nadar! Falha grave que carregava desde menino. Consequência dos medos da mãe. E da mãe da mãe. Quando diziam que se afogaria, afogava-se. Um pouco. Quase. O suficiente para sentir o gosto da água e ver anjinhos volteando a cabeça submersa!

_ Anjus? Ah! Jesuis…nunca súbi dissu, primu! Adesde quandu?

_ Aderbardu, si eu num aterminá di contá o causu, juru qui lhi…

_ Adescurpa! Adescurpa! Tava mi perdenu du principar. Vai! Segui!

Deitado nos braços do rio falecido, o avô pediu por misericórdia. Dizem muitos que, nesse momento, a boca da curva abriu-se. Não era gelo despregando-se da base. Não era pedra despencando pedaços. Era vidro líquido reluzindo diante do sol. Milhões de pedacinhos formaram uma catapulta ao contrário. Ao invés de arremessar para fora, a concha puxara o avô para dentro. Um único movimento. Slapcht! Sumiu de corpo e alma. Fora tragado por aquela vastidão de vidro que brilhava feito mel em noite de lua cheia.

_ Mel?

_ Mer…

_ Vai…

 Se já lhe rezavam a alma, entregaram-na definitivamente. Nem os “seguranças que asseguravam uma coisa por outra” tomaram atitude. Sabiam erguer barricadas. Nada de salvar aquele homem que conversava em “liquidês”. Enquanto o sol fazia cintilar as últimas pecinhas de vidro e a avó era acudida pelos vizinhos… (Continua)


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