Quando a “cura” transforma a vida em doença

Antônio Augusto Lemos Rausch (ele/ela/elu)

Recentemente, o Instituto Matizes publicou a pesquisa “Entre ‘curas’ e ‘terapias’: esforços de ‘correção’ da orientação sexual e da identidade de gênero de pessoas LGBTI+ no Brasil”, que contou com a participação de 365 pessoas. Foram encontradas mais de 26 tipos diferentes de práticas de “correção” empreendidas em contextos religiosos, familiares, em serviços de saúde e, por fim, escolares. Em pouco mais da metade (52,8%) dos casos, estas cenas aconteceram entre os 6 e 17 anos (Fróes, Bulgarelli & Fontgaland, 2022). Em 2019, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) também publicou os dados extraídos de 32 entrevistas com pessoas LGBTIs ao redor do Brasil. O livro “Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs” condensa narrativas de sobreviventes de inúmeras violências com objetivo de alterar ou silenciar alguma expressão de gênero ou sexualidade “fora da norma”.

Apesar da crueldade, estes dados não são estranhos para uma grande parte de nós. Enquanto conversava num banco com um amigo na época da graduação, lembro-me de comentar sobre alguns dos acampamentos e reuniões da igreja que já participei na infância. Pouco tempo depois, o que era uma “conversa de corredor” se tornou uma pequena roda, em que colegas contavam algumas das situações de tentativas de conversão que também passaram. As resoluções do Conselho Federal de Psicologia, que frequentemente são o debate mais fervoroso nas casas legislativas e tribunais, são a única norma que proíbe o exercício destes procedimentos por profissionais.

A ideia de “homossexualismo” surgiu muito antes de noções contemporâneas de identidade de gênero ou orientação sexual. Na verdade, antes até mesmo do surgimento do termo “heterossexual”. O termo apareceu na segunda metade do século XIX, por volta de 1860 e 1870, e foi rapidamente incorporado na literatura psiquiátrica. A obra “Psychopathia Sexualis” do psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing (1886) foi uma das mais influentes publicações sobre os “comportamentos sexuais desviantes”, influenciando o pensamento de Sigmund Freud e outros autores da psicanálise e psicologia. Isso não significa que as sexualidades desviantes e expressões de gênero incoerentes com a designação ao nascimento circulavam livres antes disso. Na verdade, o surgimento destes termos inclusive aconteceu por pressão de grupos de pessoas que eram frequentemente criminalizadas ou sentenciadas por códigos de conduta morais e religiosos na europa. Podemos destacar o médico alemão Magnus Hirschfeld, que lutou pela revogação do parágrafo 175 do Código Criminal Germânico.

Retomar esta pequena história é interessante para olhar para esses relatos e cenas de tentativas de “correção” da sexualidade. As nomenclaturas médicas e científicas sobre diversidade sexual são muito recentes, e a aceitação delas ainda mais. A saída da homomossexualidade do CID aconteceu em 1990, a da transexualidade apenas em 2019, tornando-se efetiva em janeiro de 2022. Mas ainda temos um longo caminho para percorrer. Porque a ciência nem sempre esteve “do nosso lado” e, na verdade, nada garante que algum dia estaremos “em paz” com a sexualidade e a diversidade. Novos problemas surgirão, novas noções de “normal” e “patológico” irão questionar a nossa forma de enxergar o mundo, e temos de estar preparados para lidar com isso.

Os discursos de correção da sexualidade também são facilmente disfarçados. Muitas vezes, poderão aparecer através de noções que reforçam a “pureza” e “inocência” contra a “depravação moral”. Em muitas das vezes, vão aparecer como simples impressões, e quando menos esperarmos, o assunto de uma reunião de professores é aquela menina meio levada, que não sabe sentar “direito”, ou aquele menino que não participa das aulas de futebol. E nada disso pode ser mudado através de leis, decisões judiciais ou resoluções. Ao contrário disso, só insistimos na importância delas porque sabemos que ainda não “chegamos lá”. Não sabemos quando isso será diferente, mas, como nos lembra Angela Davis, “A liberdade é uma luta constante”.

Sobre o autor
Mestrando em Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi-UFMG)

Membro do Nuh – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT

Para saber mais 
Fróes, Anelise; Bulgarelli, Lucas & Fontgaland, Arthur. Entre curas e terapias: práticas de conversão sexual e de gênero no Brasil.  São Paulo. All Out e Instituto Matizes. 2022.

Conselho Federal de Psicologia. Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTIs. Brasília: Conselho Federal de Psicologia – CFP, 2019. 220p.

Krafft-Ebing, Richard von (1886). Psychopathia Sexualis. Martins Fontes. (2000)


Imagem de destaque: Pexels
Créditos da imagem: Vinícius Vieira em Pexels

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