Carmen Rial
O artigo do Alexandre Vaz, publicado neste mesmo espaço a semana passada, é estimulante. Toca em pontos importantes para a nossa reflexão, mas não vai às ultimas consequências explicativas, e acaba sendo um tiro no pé. Evidentemente que não faz nenhum sentido escolher as Ciências como inimigas. Mas gostaria de refletir sobre a sua tese central: as ciências humanas não tem se voltado como deviam para as Ciências. E sobre sua tese secundária: é preciso dar mais “ciência” (e menos humanidades?) ao “andar de baixo”.
Sobre a primeira, reconheço que de fato não temos usado a física, química, a matemática, neurociência, etc. em boa parte de nossas pesquisas. Isto é verdade, em larga medida – mas não totalmente. Um dos antropólogos mais respeitados, Lévi-Strauss, sempre estudou outras “ciências” e atribuiu a construção do estruturalismo a influencias não só da Linguística mas também da Geologia e da Botânica. Bruno Latour, outro antropólogo francês, tem se dedicado a estudar os cientistas nos seus laboratórios, e o modo como se organizam, trabalham, lideram suas equipes, buscam financiamentos, enfim, tem olhado de perto para as “ciências” e as práticas dos cientistas. No Brasil, os cursos Interdisciplinares tem sido bons exemplos de atuações em conjunto com outras áreas e os resultados destes cruzamentos são deveras gratificantes.
Mas, ok, podemos partir do reconhecimento de que, de modo geral, há um distanciamento. O que motiva este distanciamento? A pergunta não aparece no artigo, que tem um tom de mea-culpa que não é apropriado.
Penso que há um respeito (quiçá excessivo) da parte das Humanas para estas áreas, uma deferência, que infelizmente não encontra contrapartida. E é esta ausência de contrapartida que deve ser analisada, que é central; esta falta de respeito da parte dos outros cientistas para conosco é que deveria ser tratada. Vejamos: nenhum de nós, em sã consciência, e em uma situação formal de diálogo como é uma reunião acadêmica ou política (veja bem, não estou falando de um coquetel), teria coragem de fazer observações sobre química a um químico, ou sobre biologia a um biólogo. Há um acatamento merecido de sua expertise. Já o contrário não vale. A cada encontro com colegas em posição de autoridades (ou com gestores públicos), somos defrontados com análises e diagnósticos sobre temas de nossas áreas de conhecimento que, levianamente, dispensam um saber acumulado de anos de pesquisa nas Ciências Humanas. Químicos interpretam e “resolvem” o problema da violência urbana; físicos, o das relações interétnicas; bioquímicos, o da educação básica; e matemáticos, o dos movimentos sociais. A heterogeneidade de um país como o nosso é descartada, as causas do problema reduzidas a uma única variável. As fontes de legitimação do argumento podem ser muitas mas raramente são os pesquisadores do tema. Assim, é realmente compreensível que não seja necessário financiar pesquisas de cientistas das Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas – afinal, se qualquer outro pensante tem as boas respostas…
Não há dúvida que há especificidades na nossa relação com os objetos de pesquisa, e que disto resulta parte do problema apontado aqui (o da ingerência no nosso campo, que esta sim deveria ser criticada). Como bem apontou Lévi-Strauss, somos “uma ciência em que o observador é da mesma natureza que o seu objeto” (1974:16). Daí, provavelmente, esta auto-autorização dos colegas em falar com tanta convicção sobre nossos objetos.
E compreensível, portanto, mas inaceitável, que no momento em que estamos buscando o dialogo com as Ciências exatas e biológicas para construir junto um projeto para o país, vejamos nossos esforços boicotados por alguns situados em altas esferas politicas que pensam que as Humanas são apêndices, enfeites, desnecessárias.
Nós não podemos argumentar no mesmo sentido. Primeiro porque não é assim. Segundo, porque seria um suicídio faze-lo. Não devemos concordar com uma valoração diferenciada das pesquisas. Não basta inventar a vacina, é preciso garantir que ela seja justamente distribuída, aplicada respeitando a ética, etc, etc. E o mesmo vale para a energia elétrica – seria irresponsável pensa-la sem levar em conta como e onde produzi-la, sem levar em conta os impactos que tem sido apontados pelos estudiosos de Humanas que se debruçam hoje sobre as hidroelétricas, etc. Sabemos bem em que dá uma Ciência que não leva em conta parâmetros das Humanidades na sua construção.
No mesmo sentido, é ingênuo pensar que a ausência de microscópios e laboratórios nas favelas e periferias se deva a uma falta de diálogo entre as Humanas e as Ciências Naturais e Tecnológicas. Ou que tenhamos alguma culpa nesta ausência. Para ficar num documentário, já que foi João Salles o citado, recomendaria La sociologie est un sport de combate, no qual Pierre Bourdieu aponta claramente a divisão entre o que se espera de um jovem do “andar de baixo”, das periferias francesas (a banlieu), e porque os projetos sociais lá se centram na música e na dança. Salles tem razão, não é diferente no Brasil. Aqui, poderíamos buscar as raízes desta separação já nas teorias dos racistas do século XIX – Gobineau, o mais influente deles (tomava chá com D.Pedro II), distribuía as qualidades humanas ficando para os negros às físicas (olha aí a dança e o esporte) e aos brancos às intelectuais (olha aí os laboratórios). Se retiramos raça e colocamos classe social, a equação permanece. É por isto, e não por uma trama das Humanas, que os laboratórios não se instalam nas periferias.
Mais do que nos autoflagelarmos por um distanciamento das “Ciências”, cuja importância jamais ninguém negou, penso que é o caso de sublinhar a pouca importância que nos tem sido atribuída na construção das “Ciências”.
Carles, P. 2001. La sociologie est un sport de combat – Pierre Bourdieu. 2h26, França.
Lévi-Strauss, Cl. 1974. “Introdução à Obra de Marcel Mauss” in Sociologia e Antropologia vol. 1. São Paulo, EPU/USP.