Cabeça dinossauro: uma representação da selvageria brasileira

Carlos André Martins Lopes*

Em 1986, uma das mais expressivas bandas de rock do Brasil, os Titãs, lançaram um dos discos mais significativos de sua carreira, além de um dos mais expressivos da história do Rock no país. Trata-se do álbum intitulado “Cabeça dinossauro”, obra que traz como uma das faixas o hit que lhe deu nome.

Cabeça dinossauro, o álbum, traz uma figura masculina estampada na capa. Ele possui uma cabeça desproporcionalmente grande, apoiada num grosso pescoço. Apresenta um rosto enrugado, com muitas linhas de expressão que denotam ódio brutal. A expressão dos olhos contribui para reforçar a ideia de ódio e brutalidade, além de remeter a uma postura de indiferença e de violência. A boca apresenta uma abertura que passa a impressão de que está prestes a lançar um ataque feroz, e seus dentes, à mostra, reforçam essa ideia. Em síntese, o personagem da capa do álbum remete à ideia de barbárie.

Numa interpretação geral, poderíamos afirmar, seguindo a enciclopédia do Itaú Cultural, que o disco opera com um dualismo: de um lado, a racionalidade, representada pela cabeça gigante da figura estampada na capa; de outro, a barbárie de um Estado violento. Essa interpretação, inclusive, é reforçada por outras músicas presentes no disco, a exemplo de “Estado violência”.

De fato, o país acabava de sair de uma violenta ditadura civil/militar, marcada por prisões arbitrárias, torturas, violência policial e censura. Ainda em 1986, dois anos depois do fim da ditadura, a banda teve uma das canções, presente no citado álbum, intitulada “Bichos escrotos”, proibida de tocar em rádios. Pode-se afirmar que a mentalidade repressiva e violenta, herança da ditadura, sobreviveu ainda por muito tempo – e poderíamos dizer que ainda sobrevive nos dias atuais – na forma de violência policial e/ou de leis coercitivas e arbitrárias, destinadas a manter determinados grupos sociais em estrita submissão. Contudo, a interpretação do Itaú cultura é excessivamente centrada apenas na “cabeça dinossauro”, esquecendo, porém, outros elementos significativos da canção. A música possui três estrofes, mas pode ser resumida a três versos. São eles: “Cabeça dinossauro”; “Pança de mamute”; “Espírito de porco”. Estes versos ampliam, consideravelmente, as possibilidades interpretativas da canção.

Vamos começar lembrando que a ditadura capitalista brasileira representou o triunfo dos interesses dos setores hegemônicos – econômicos, religiosos, políticos – do Brasil. Foi, por isso, uma brutal dominação das classes abastadas sobre as menos favorecidas, o que resultou no aprofundamento da desigualdade social. A cabeça dinossauro não significa outra coisa que não uma classe economicamente privilegiada que pensa e se comporta com valores pré-históricos, isto é, apostam na barbárie, na pura e simples violência como instrumento de dominação. Uma classe que possui os instrumentos da violência e que lança mão da lei da selva, na qual só os mais fortes, os mais violentos; os mais bárbaros, primitivos, cruéis possuem a chance de sobreviver. A cabeça dinossauro num rosto que expressa selvageria não significa mais do que um intelecto posto a serviço da barbárie. A cabeça dinossauro, nessa perspectiva, representa a selvageria da sociedade brasileira, na qual os animais gingantes, fortes, mais selvagens, fazem de alimento os mais frágeis, os mais desprovidos de meios de defesa.

Por outro lado, sabe-se que no capitalismo há um apetite desenfreado, uma mentalidade totalmente voltada para o ideal de acúmulo de riquezas, o que só é possível por meio da prática do despojamento das classes trabalhadoras. Durante a ditadura capitalista brasileira, formaram-se grandes conglomerados econômicos, grupos que acumularam imensas fortunas. Isso só foi possível devido à atuação de um Estado que lançou mão de uma política de arrocho salarial, prática por meio da qual se garante que os frutos do trabalho assalariado sejam apropriados por seres com “panças” gigantes, insaciáveis. Falava-se muito à época que primeiro tinham que produzir o bolo para depois reparti-lo. Em outras palavras, era necessário engordar os mamutes, direcionando para esses animais gigantes toda a comida existente. Depois de excessivamente gordos, o mamute/capitalistas, enriquecidos com o fruto do trabalho alheio, repartiriam sua gordura com aqueles que o engordaram. A “pança de mamute” não significa nada além do que o estômago insaciável de uma classe dominante que tinha o Estado ao seu dispor e que, quanto mais engordava mais comida era requerida.

Uma cabeça dinossauro com uma pança de mamute só podem possuir um espírito de porco. Isso na acepção que ao suíno foi conferida na passagem bíblica protagonizada por Jesus. Num diálogo com uma legião de demônios, fica acordado que essa turba sairia do corpo de um homem com a condição de que encarnaria numa manada de porcos que estava por perto. Desde então, a expressão “espírito de porco” constitui-se como uma referência a essas temidas entidades das trevas. Contudo, esse pequeno animalzinho, em muitos aspectos, indefeso, até, não poderia representar a cobiça, a avareza, a selvageria dos nossos grupos economicamente dominantes. A genialidade titânica da banda pôs, então, esse espírito de porco, na acepção bíblica do termo, no corpo de animais cuja selvageria é imensurável. Isso representa muito melhor a barbárie capitalista dos nossos grupos dominantes.

* Mestre em história pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), licenciado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e professor da rede pública de ensino do estado da Paraíba e do Município de João Pessoa, Pb.


Imagem de destaque: Clem Onojeghuo / Unsplash

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