Brasil de tumbeiros

Dalvit Greiner

A História do Brasil oficial é, até hoje, uma história dos brancos que invadiram o território indígena em 1500. Assim, essa História deixou morto e enterrado os corpos de indígenas e negros de todas as nações, da América e da África. Apesar da boa recepção por parte do indígena, a convivência tornou-se imediatamente violenta quando os portugueses resolveram que, para pagar o empreendimento, deveriam levar o pau-brasil para a Europa. Como não tinham muita gente, escravizaram os poucos indígenas que restaram no litoral para cortar e embarcar a madeira. Desmatamento e escravização até hoje. Isso foi apenas o início.

Com a mudança de empreendimento, os portugueses começaram a plantar cana-de-açúcar (que trouxeram de suas ilhas) e construíram os engenhos. Porém, um engenho é feito de trabalho pesado e precisa de muita gente: plantar, carregar, moer, ferver a garapa e apurar o açúcar, carregar até o porto, embarcar. Tudo isso era feito no braço ou, quando muito, uma mula. A única máquina era, de fato, a moenda. Mesmo assim, naqueles locais sem ou com pouca água, a máquina era tocada com tração animal (boi ou mula) ou humana (o homem escravizado).

Precisando dessa enorme quantidade de trabalho, os europeus – principalmente portugueses e ingleses – perceberam que vender gente dava muito dinheiro. Então, o segredo para ganhar muito mais dinheiro, era criar um triângulo de comércio. Os traficantes – era assim mesmo o nome – compravam açúcar, cachaça e tabaco nas Américas, além de outras matérias primas; vendiam uma parte na Europa e lá compravam tecidos e manufaturas; passavam pela África onde vendiam o resto do tabaco e da cachaça e compravam gente para vender nas Américas. Voltavam para as Américas e vendiam os tecidos e manufaturas europeias e os negros africanos. Assim, o dinheiro circulava e aumentava cada vez mais.

Caçados no interior da África e vendidos nos principais portos do Oceano Atlântico, várias nações negras foram forçadas a viver nas Américas, caso sobrevivessem às longas e penosas viagens, amontoados nos navios chamados negreiros. Foram mais de 12 milhões de africanos espalhados pelas Américas, quase 5 milhões só no Brasil. As condições da viagem eram tão horríveis e mortais que o poeta negro baiano Castro Alves relata essa tenebrosa viagem, em seu poema O Navio Negreiro. Repare neste verso:

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d’amplidão!

Hoje… o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar…

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar…

Essa forma dolorida e violenta de arrancar uma pessoa da sua terra provocou aquilo que chamamos de diáspora africana. Diáspora é o nome que se dá a uma migração forçada, obrigatória, violenta. Como vimos no poema, Castro Alves nos mostra um africano guerreiro livre (veja lá… Ontem) que depois é transportado num porão de navio (veja lá, novamente… Hoje). Porém, esse corpo negro, arrancado da África, é portador de uma cultura que vai sobreviver a tudo e a todos.

Mais atual e não menos real do que o visto por Castro Alves são as condições dos povos negros no Brasil. A forma como são caçados nas periferias por um governo que escolhe a quem vai matar lentamente, mesmo sendo a maioria; por um capitalismo que, em seu planejamento, decidiu que a “carne mais barata do mercado” é descartável; por uma polícia que escolhe quem será assassinado, pois “Quem segurava com força a chibata / Agora usa farda / Engatilha a macaca / Escolhe sempre o primeiro / O primeiro negro pra passar na revista”. O camburão escolhe na multidão, que é a periferia desse país, verdadeira tumba, quem vai provocar “o baque de um corpo ao mar”.

Essa diáspora africana, a despeito do desrespeito e do preconceito propagado pela grande mídia, fez com que a cultura africana se impusesse de forma não-violenta sobre aqueles lugares de horror e escravidão, por meio de contribuições inigualáveis. Mas, nem por isso, devemos esquecer que a luta ainda é muita e longa. Uma luta cujo inimigo não tem rosto, mas que tem como objetivo acumular cada vez mais, independente do corpo que explora no mundo.

 Porém, devemos ter bem claro: no Brasil, esse corpo é de um homem negro, jovem e morador da periferia.


 Imagem de destaque: Navio Negreiro. 1830. Johann Moritz Rugendas. Acervo do Museu Itaú Cultural.

 

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