Boris Schnaiderman (17.v.1917 – 18.v.2016) e seu Caderno Italiano – Alexandre Fernandez Vaz

Boris Schnaiderman (17.v.1917 – 18.v.2016) e seu Caderno Italiano

Alexandre Fernandez Vaz

Na última quarta-feira morreu Boris Schnaiderman, um dia depois de completar noventa e nove anos. A longa vida do intelectual que inaugurou a tradução sistemática da literatura russa no Brasil, bem como o curso livre de tradução de russo na Universidade de São Paulo – depois tornado graduação –, de onde se aposentou em 1979, é também expressão do século que ele viu nascer e morrer, o short century, como o chamou Eric Hobsbawm.

Nascido na Ucrânia no ano da Revolução de Outubro, mas de formação e idioma originalmente russos, logo foi com a família para Odessa. Diz-se que em suas lembranças infantis estaria a rodagem da famosa cena da escadaria de O Encouraçado Potemkin (1925), de Serguei Eisenstein. De lá emigrou para o Brasil, onde viveu vida de estrangeiro durante muitos anos, o que não era fácil, como tampouco é hoje. Apesar da paixão pela literatura graduou-se em Agronomia, obtendo anos depois de formado a naturalização. Logo compôs o contingente beligerante na Segunda Guerra Mundial, embarcando para a Itália em agosto de 1944 como calculista de tiro. Da experiência na Força Expedicionária Brasileira resultou o romance Guerra em Surdina, de 1964, com algumas novas edições, e uma série de artigos que foram reunidos em Caderno Italiano (São Paulo: Perspectiva, 2015).

Trata-se este de livro dos mais interessantes e faço dele um comentário como breve homenagem à longa, intensa e profícua vida de seu autor. Nele escasseiam os textos inéditos, mas sua reunião oferece um novo plano de leitura para os escritos que no mais das vezes se dedicam, como o título sugere, à experiência da II Guerra. Também estão presentes memórias do período que antecedeu a Campanha da Itália, o inclui a precária preparação para ela, assim como o período posterior ao regresso, com o trabalho de agrônomo e a dedicação cada vez maior à tradução e à literatura em geral.

Sobre o ano e meio passado na Itália, Schnaiderman também narra a relação de prepotentes e despreparados oficiais com praças, muito hierárquica e distante se comparada com os colegas britânicos estadunidenses. A viagem de navio longa e sofrida e o incômodo revelado com a ditadura Vargas por parte dos soldados de baixa patente também ganham destaque, ficando a impressão de que muitos não sabiam bem o que aconteceria no percurso de ida e no continente em guerra. De pronto, eram reféns de uma batalha dura a ser travada com inimigos resistentes. E para a qual estavam insuficientemente preparados. O sargento Schnaiderman, que toma nota e depois redige suas memórias, teme o esquecimento de tudo aquilo, mas não deixa de mostrar seu estupor com o júbilo da população italiana ao final da contenda, tampouco sua surpresa – não imune à autocrítica – ao voltar, já nos anos 1960, ao lugar que fora teatro de operações e observar que muitos, ao contrário do que supunha, tinham péssimas lembranças da ocupação das tropas brasileiras. Resultado da experiência do presente e elaboração ex-post-facto, a memória é o encadeamento possível, feito de lembrança e esquecimento regidos por afetos nem sempre conhecidos. Não foi diferente com ele que, ao dar-se conta disso, transformou-a em objeto de reflexão, compondo, então, ao juntar outros estilhaços e rastros – esses dejetos da guerra de cada um –, um panorama da experiência história do século vinte.

Na Itália Schnaiderman encontrou notícias de Antonio Gramsci e do nascente Neorrealismo por meio de revistas e jornais que, “em meio às efusões da Libertação”, trazia um tenente. Foi também o oficial que lhe disse do nascimento de “uma nova ciência, a dialética”, frente ao que o leitor curioso refletiu: “Lembro-me de que, nessa ocasião, fiquei calado. Teria sido para não o constranger com uma contestação? Ou por causa de minha própria insegurança em termos conceituais? Afinal, nossa formação foi se fazendo nos anos do Estado Novo.”  Prosseguindo, e sem deixar de impregnar-se pela dinâmica histórica, pondera que “Mesmo assim, devo ter sentido ganas de lhe falar um pouco da dialética entre os gregos e também da dialética hegeliana, do marxismo. No entanto, eu tinha eliminado esse último em meu íntimo, depois da catástrofe interior que tinha sido para mim o Pacto Germano-Soviético.”  Posso considerar que não há vínculo necessário entre a tradição dialética e a violência, mas não há como não me solidarizar com a aflição de quem está no campo de batalha e vê o estalinista concorrendo com o nazi-fascismo no cabo-de-guerra de horrores.

Em Sobre a fotografia, Susan Sontag lembra um filme de Jean-Luc Godard em que dois soldados de um exército vitorioso, com “direito” a tudo saquear entre os vencidos, escolhem, excitados, apossar-se de uma caixa de fotografias. Schnaiderman, por sua vez conta de uma foto que lhe teria sido presenteada por um colega que a encontrara em meio a pertences de um inimigo alemão. Nela, que está reproduzida no Caderno, aparecem posando soldados em uniforme, muitos deles garotos, rostos tranquilos e mesmo contentes. “Até hoje, a alegria no rosto daqueles jovens só me causa mal-estar. Era a alegria dos que estavam pisando territórios invadidos. Como verbalizar aquilo? Como encontrar uma tradução? Pois esta exige, certamente, um mínimo de linguagem comum. E não estaria aí o limite do traduzível, o limiar da palavra?” Assim se colocou o grande tradutor frente ao indizível, reconhecendo-se nos limites de seu grandioso ofício. Inteligência que deixa saudades.

Berlim, Kreuzberg, maio de 2016.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *