Big Brother Brasil (ou: Quando ultrapassamos todos os limites)

Alexandre Fernandez Vaz

No final de 2001, o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) adiantou-se à TV Globo e promoveu, superando sua geralmente imbatível adversária, um reality show. Os programas de entretenimento nesse formato vinham se disseminando em vários países e, sem parar de interessar o público nos anos seguintes, abrigariam de tudo, de atletas à famílias célebres, passando por aspirantes a cozinheiro e gente que se virava para sobreviver em uma ilha deserta. 

Casa dos artistas – assim se chamava a atração do canal de Sílvio Santos – reunia um conjunto de subcelebridades, como o simpático roqueiro Supla, mais conhecido pela excentricidade do que pela performance musical, e o hoje deputado Alexandre Frota, que se notabilizara como ator pornô e que depois fingiria ser jogador de futebol americano, antes de lançar-se na política como lugar-tenente de Jair Messias Bolsonaro. Havia também a atriz Bárbara Paz, hoje também diretora e escritora, ela que, aliás, saiu-se vencedora da contenda.

A Globo, que esperneou dizendo que os direitos da franquia Big Brother eram dela, realizou poucos meses depois a primeira edição do programa que marcaria as férias de verão dos telespectadores. Ao longo dos anos, a versão brasileira serviu de plataforma para que alguns se lançassem a voos mais altos, como Grazi Massafera e Jean Wyllys. 

A primeira exerce a profissão de atriz e compõe o elenco de telenovelas e minisséries da própria emissora, além de eventualmente atuar no cinema, enquanto o segundo, militante aguerrido com destaque para o campo LGBTQIA+, chegou a deputado federal pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Depois de oito anos na Câmara e duas reeleições, não assumiu a cadeira em 2019, exilando-se em função das ameaças que vinha recebendo depois do movimento que levou Bolsonaro à vitória eleitoral. 

O presidente, aliás, não lamentou o fato de um deputado federal abdicar de seu mandato republicano por falta de garantias à própria vida. Eis algo mais a se somar ao extenso rol de agressões à democracia com o qual temos sido presenteados.

Na edição deste 2021 – ano que, seguindo seu antecessor, começou muito mal – as tensões não têm cessado no Big Brother Brasil. Na semana passada, um dos participantes – tido por parte de seus concorrentes, segundo se lê na imprensa, como sujeito um tanto aborrecedor – desistiu de seguir no confinamento e de, portanto, disputar o prêmio de um milhão e meio de reais. Foi achincalhado por alguns dos participantes, com ações de injúria racial e outras formas de maus tratos, culminando com ataques bifóbicos perpetrados depois de beijar um colega em uma festa. 

Apesar de ambos serem adultos e da ação ter sido mutuamente consentida – e, ao que parece, muito bem desfrutada –, a violência não deu trégua, o que fez com que a autopreservação falasse mais alto e ele deixasse a atração. A principal algoz de Lucas Penteado teria sido a rapper Karol Conká que, em poucos dias, foi capaz de fazer-se uma espécie de inimiga do povo, ou seja, dos aficionados ao programa, assim como da crítica que acompanha o negócio promovido pela TV Globo. Uma inimiga às avessas daquele de Heinrich Ibsen.

Não deixa de ser curioso que o programa de entretenimento tome para si uma expressão de George Orwell, consagrada no livro 1984, mas com sentido inverso. Na famosa trama há uma tela atrás da qual alguém a todos vigia – ou talvez vigie –, o Grande Irmão, que não se sabe quem é ou quem são. O aparato é permanente, mais ou menos como acontece hoje com os smartphones, por meio dos quais somos vigiados, por exemplo, em nossas práticas de consumo. 

Mas, no programa da Globo acontece o contrário, são os telespectadores (que são muitos) que exercem vigilância sobre os participantes. Estes, por sua vez, são também vigiados pelos institutos que medem a audiência e conferem o que é postado nas redes sociais. Pensando bem, talvez não haja mesmo muita diferença entre o programa e o que Orwell apresenta, tirando o fato, nada secundário, de que o que é crítico no autor inglês é motivo de júbilo para nós. Há um gozo perverso em vigiar e ser vigiado.

Dito isso, considero que o que vem ocorrendo no Big Brother Brasil, pelo menos até onde posso acompanhar pela imprensa, é mesmo importante, já que todos podemos assistir à produção socialmente mediada do sofrimento e da dor, e isso deve causar repulsa em gente civilizada. Absolutamente nada justifica os abusos contra Lucas Penteado. 

Somado a isso, é bom que não se esqueça que o próprio programa é, em natureza e concepção, destrutivo: um espaço em que se coloca pessoas para humilhá-las ao serem mostradas, no pior dos casos (ou seria no melhor?), em seus limites emocionais. Que seja esse aquário da irracionalidade o gerador de questões para debate, é a mostra do buraco em que estamos. 

A sordidez de fulana ou de beltrano, ademais, aumenta a audiência e mobiliza a fúria nas redes sociais. Vale a pena, então, perguntar por que esse horror tanto nos seduz. Oxalá nos envergonhemos das respostas.

Ilha de Santa Catarina, fevereiro de 2021.


Imagem de destaque: Marcos Paulo Prado / Unsplash

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