– Foi…
Seu Nico fora porteiro por muitos e primorosos anos. Servia sorrisos. Cumprimentos. Seguiu a rotina de porteiro engajado na profissão. As gentes lhe eram caras.
– I…será qui vem daí as tar meia amarela?
– Dá prá sabe, não! Essas informação não tão nos arquivo!
– I o restu? Adescobriu o nomi?
– Sobrinomi!
– Nada! Lá só tem o A. mesmo!
– Nomi ô sobrinomi?
As tardes recolhiam o Seu Nico para outros afazeres. Vê-lo, apenas em casa, aos pés do fogão e de N’sinhoraparicida! Rei nos folguedos, era devoto. A fé e o povo moviam-no. O Congado era uma graça recebida direto de São Benedito. Mais Chico Rei. As cantigas rodavam outubro. E em necessidade, saíam sem muita impertinência. Artista e rezador, Seu Nico benzia os precisado. No grande fogão de barro, fervia o arroz em dobro. Feijão para quem chegasse. Um tropeirim ao ponto. De boa vontade e antecipado, ele deixava a comida da espera em panela tampada.
– Há di está quente prá quem tem fomi! Há di istá!
– Ô, Nico! Mas é munta comida! Adeve di si perde.
Não perdia. Servia os recém-chegados na medida certa da comida encomendada.
– Faiz mais, mulé. Faiz mais qui ainda não chegaru todos!
Assim regulava a tarde. Estado de espera. De alcance. Ajuda que vinha de cima – apontava o firmamento – e do fogão. Aceso. No ponto de receber mais um. Até se irem eles e a comida. Medida de quem conhece as fomes. Os embaraços da vida. Tropeços que podem derrubar as cabeças mais fracas. Para elas ele rezava. Pedia clemências. Piedades. Pedia roça farta e boa chuva. Seu Nico conhecia as rezas prontas e outras ele criava. Coração não faz improviso. Tem lealdade. Tem ciência das coisas que se passam sobre os mundudimeudeus. Mundo vasto!
– Sem portera!
– I u qui é qui não tem portera, meu véio?
– Esti mundudimeudeus! São os homi que faiz barrera! São os homi!
Melhor do que ninguém, Seu Nico conhecia barreiras. Nascido pobre, negro e desapercebido, conhecera-as em profusão. Não falava sobre elas. Mas o seu coração guardava algumas lembranças. Lembranças para nunca esquecer de onde viera. Para não se desligar dos seus. Os congadeiros conheciam as lágrimas do Rei. Seu Nico chorava a história. Chorava os santos e o Chico Rei. Chorava o povo escravizado. Ardiam-lhe as feridas contadas. O sequestro de seus antepassados na Mãe África. Chorava o povo livre que ficou perdido. Sem terra para plantar. Sem pátria para amar e defender. Sem identidade para bater no peito nome e endereço. Filhos de muitos crimes. Conhecera as barreiras. Conhecia os rastros delas nos dias atuais.
– Tá munto do aquietado hoje, meu véio! Vá jogá conversa fora cum Seu Errebardu. Vá!
– Não possu, minha véia! Tem munta genti precisada prá entrá pur essa porta! Munta genti!
Entravam. Aquela porta permanecia aberta. Recebia os passos magros. Imberbes. Abraçava as crianças com lombriga grande. Os roceiros que entregavam mercadoria e aguardavam pagamento. Todos conheciam aquela porta. Bebiam do calor sem julgamento. Da benção e da precisão suprida. Seu Nico entregava as tardes à outra forma de portaria. Essa, melhor do que a outra, servia a ambos os lados. Recebia os de fora. Devolvia-os como se fossem de dentro.
– Vô! Lombriga pega?
– Num é bem ansim, fia! Mas tem umas coisa a si fazê prá modi num pegá.
– Pobreza pega?
– Num pega. Mas é doença! Criada! Ela si alastra pelas mão dos homi… e é pelhor qui lombriga.
Afora as tardes em devoção à espera, Seu Nico abria o dia cantando novidades. Recitando poesias frescas. Recém-escrivinhuradas na memória do poeta. Repetia-as sem perder verso. Nenhuma rima se perdia. Mesmo Seu Nico desconhecendo o risco da letra. A poesia lhe sobrava.
Naquele ano, o Natal chegou antecipando aguaceiros. Não deu outra. Chuvas de perder o milho caíam pelas terras mineiras. Seu Nico preparou a festa. A chuva não o assustava. Queria a reunião de todos e todas. Fogão aceso. Mesa posta. 24 de dezembro era dia de visitas. Cumprimentos. Alegrias que se pode manter aos quase cem anos de muita vida.
O povoado desfilou na cozinha do artista, congadeiro, benzedor, catireiro. A porta, acostumada ao volume de passantes, não estranhou a alegria. Seu Nico beirava um século! Ninguém queria ficar de fora. Cumprimentar o poeta cantador às vésperas do Natal era bom sortilégio. As crianças prepararam perguntas:
– Vô!? Pru que di suas meia ovo?
Ele riu gargalhadas borbulhantes de avô secular.
– Meu véio gosta di amarelu…
Ele não disse que sim. Também não confirmou o não. O assunto vingava em aberto. Como a porta. Alegre e convidativa.
– Ô, Seu Nicu? Havéra di o sinhô contá o seu nomi compretu?
Não disse não. Mas também não emendou a conversa. Envolvido na festança que reunia os de perto e os de longe, Seu Nico fechou o dia. Na aldrava, o Natal batia visita. Natal de chuva grossa. Natal de dia lindo!
O sono de Seu Nico virou a manhã. Fechou a algibeira de muitos poemas. Foi morar nos braços de Nossa Senhora Aparecida. Aquela que, em vida, atendera-lhe os rogos piedosos. Às vésperas do Natal, Seu Nico voltou para casa.
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