Carlos Alberto de Moraes
Recentemente, a população brasileira viu-se novamente enredada nos cordões brutais e anavalhados do assombro e da perplexidade quando notícias de ataques armados em escolas foram alardeadas pela mídia. A sensação incômoda de repetição, de fragilidade, de insegurança, de tristeza, germinou mais uma vez abrindo fissuras dolorosas em nosso cotidiano. Que normalidade pode ser reivindicada após feridas tão desconcertantes serem re-abertas? Especialmente para os familiares das vítimas e para os sobreviventes, não há mais normalidade possível a ser readquirida. Os traumas esculpidos por ataques a escolas acarretam cicatrizes físicas, mentais, emocionais, sociais e psicológicas em todas e todos os envolvidos. Há comprometimento da saúde mental, ressonância no desempenho educacional, influência no absenteísmo crônico, majoração no uso de antidepressivos, desenvolvimento de fobias.
Ao lado disso, eleva-se um clamor de mães, pais, diretores/as, autoridades legislativas e dos executivos, de parcela da sociedade que pode ter sua voz repercutida, para que sejam implementadas medidas cada vez mais drásticas para contenção de casos, para prevenção de ataques armados e para a proteção das escolas. No entanto, evidencia-se que as medidas requeridas apenas tangenciam a superfície da questão, ao sugerirem que haja, nas unidades escolares, reforço no policiamento, presença constante de seguranças contratados ou funcionários autorizados a portar armas, detectores de metal na entrada das escolas, máquinas de raio-X, treinamento defensivo dos profissionais da educação, militarização das escolas, mais câmeras de monitoramento, mais muros, mais arame farpado, mais grades.
Tais fórmulas redentoras saciam demandas por maior grau de repressão (e, certamente, por mais violência), mas ocultam conteúdos cruciais que deveriam vir à tona e serem considerados e investigados pela sociedade brasileira. É relevante observar que, apesar da comoção gerada por chacinas e apesar das aflições e angústias impingidas à vida de estudantes, professoras, professores e famílias, os tiroteios não foram capazes de instigar significativamente a opinião pública sobre o controle de armas e de munição, já que políticos e eleitoras/es ainda defendem a compra, a posse e a circulação de armamento. Nesse contexto, não podemos obliterar o fato de que houve investimento intencional na facilitação do acesso à compra de armas, na proliferação dos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), na cumplicidade com milicias militares e paramilitares, no incremento de células neonazistas. O certo é que armas de fogo (e brancas) ficam guardadas ou expostas no ambiente familiar doméstico, locus predominante da procedência do arsenal utilizado nos ataques ocorridos em escolas.
A frequência dos ataques às escolas e a superexposição midiática não pode redundar na naturalização do fenômeno e nem tampouco na insensibilização individual e social diante da dor, da violência, do trauma, da morte, anestesiando a capacidade da sociedade em estudar, analisar, compreender e propor ações para lidar com o problema.
Como não estamos à frente de um filme, de uma ficção ou de um jogo, urge não desconhecermos o assunto e abordarmos a questão na sua inteireza e concretude, tratando os meandros de tal complexidade com austeridade e equilíbrio, tendo em vista que direitos humanos estão sendo desrespeitados em todas as pluridimensões do problema.
Uma das interrogações que persiste é: por que escolas? A violência, mesmo quando associada à total indiferença às alteridades beirando a psicopatia, ocorre em qualquer âmbito e é vivenciada por indígenas, negros, mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência, homossexuais, nordestinos, rotineiramente. Ainda estamos engolfados por um tipo de humanidade que hipercultura a guerra, o extermínio do outro, a devastação da natureza, a morte. Produzimos destruição. Produzimos aniquilação. Produzimos sofrimentos, humilhações, inferiorizações, pisoteando os mais basilares direitos humanos. No entanto, ainda assim, surpreende-nos (e deve surpreender mesmo) o fato de que ataques armados ocorram em escolas.
O palco para um atirador pode ser qualquer espaço: uma praça, um shopping, um espetáculo de rock ou de música sertaneja em ambiente aberto. Em alguns casos, e isso está sendo cada vez mais estudado devido à frequência e à idade dos atiradores, o local deliberadamente escolhido é a escola em que estudam ou estudaram. Provavelmente, porque a escola é o território que eles “dominam”, que conhecem topograficamente, que constitui seu espaço de mobilidade, que eles carregam na memória, que faz parte de sua trajetória de crescimento, que permite o contraponto, a troca de ideias, que evidencia conflitos interpessoais e possibilita a emersão de problemas. Daí, talvez, a opção por esse lugar de entrecruzamentos de desejos.
Se, por um lado, a escola ainda se apresenta como um signo, como um elemento simbólico essencial à nossa formação humana, como lugar do acolhimento, da escuta, do cuidado, por outro, ela sofre o peso do protagonismo que lhe é destinado na organização social. E não pode ser culpabilizada por acontecimentos tão trágicos.
E o que leva um adolescente ou um jovem a enveredar pelos descaminhos de ataques e agressões? Ora, como o ser humano, na sua esfericidade, é um nó complexo de relações, os múltiplos fatores que conduzem uma pessoa a dedicar tempo, planejamento e energias para perpetrar um atentado estão intimamente entrelaçados. Aqui, apenas uma lista de algumas circunstâncias que podem fazer explodir harmonias interiores e suscitando eventos dramáticos na exterioridade relacional: racismo, xenofobia, misoginia, machismo, patriarcalismo, desigualdade social, ausência de políticas públicas, isolamento, negligência ou abandono familiar, extremismo, exibicionismo, revanche, ódio às minorias, bolha virtual, bullying, exclusão social, autoexclusão social, deep web, terrorismo, competitividade, apologia à violência, narcisismo, ausência de empatia, desemprego, vingança, abuso doméstico, obsessão por armas. Tão amplo é o inventário de causas que os atiradores, apesar de serem, na maioria, brancos, homens e utilizarem armamento acessado na própria casa, apresentam perfis psicológicos diferentes entre si, condições de vida diversas e motivações diversas.
Porém, pode haver um elemento comum que merece ser enfatizado: diante de tamanha complexidade e, sem desconsiderar os fatores subjetivos e responsabilidades individuais, é inegável que vivemos em uma sociedade adoecida, marcada pela seta envenenada da indiferença, instauradora de uma cultura de violência e que cria constantemente condições adoecedoras que submetem cidadãs e cidadãos ao derretimento ético da convivialidade saudável. Nesse sentido, é que podemos compreender mais profundamente este fenômeno. Assim, ao lado de comportamentos individuais sinuosos e labirínticos, é preciso refletir sobre a responsabilidade da escola no trato com o afeto e as relações humanizadoras, sobre a nossa responsabilidade cidadã na escolha de projeto de país, sobre a imprescindibilidade da resistência à cultura da enfermidade, e sobre o desvelamento de atos/palavras/omissões de autoridades governamentais que adubam, com seu discurso bélico e com suas ações perversas, o menosprezo pelos Direitos Humanos, a tortura, a violência e o armamento como solução de conflitos internos/externos.
Se as causas são muitas e completamente intrincadas, as possíveis soluções também passam por uma série de atitudes a serem tomadas por parte dos que anseiam por sendas mais humanizadoras. Alguns passos podem ser empreendidos desde já.
A escola precisa refazer-se. Precisa repensar sua arquitetura, dialogando com a arquitetura do entorno, com o povo, com a história, com o clima, com o relevo e com a natureza onde está inserida. Deve redimensionar seus espaços internos de mobilidade transformando-os em espaços de encontro e não apenas em corredores de passagem. A cronotopologia da sala de aula necessita ser redimensionada para o trabalho em grupo e para a aprendizagem coletiva. Para tanto, a disposição de carteiras/mesas/cadeiras tem que optar pela circularidade, pela preponderância das atividades grupais cooperativas, permitindo ao educador/educadora movimentar-se por entre os grupos, prestando assistência ativa e criativa a todas/os e a cada uma/um. O planejamento pedagógico tem que obrigatoriamente ser coletivo. Sem coletivo de educadoras/es, não ganham raízes as práticas educativas. Tudo fica diluído, enevoado, disperso. Só conseguimos educar em comunhão, em coparticipação. Currículos precisam estar em plena conexão com as culturas infantil e juvenil (e com a adultície, no caso da EJA). A educação deve ser integral e integradora. Deve-se desejar ardentemente e viabilizar processos de formação permanente em resolução de conflitos, em história e cultura afro-brasileira, indígena e africana. A avaliação deve ser libertadora, fora dos padrões coercitivos, limitados e meritocráticos adotados pelos sistemas de ensino.
O poder público tem que oferecer condições para que as escolas, em sua autonomia didático-pedagógica, avancem no sentido da formação emancipadora, crítica e dialógica. Deve ofertar programas de formação permanente para as educadoras e educadores. E ir além, conectar a Educação com políticas públicas consistentes, abrangentes e integradas, especialmente no âmbito da saúde, do lazer, do esporte, da assistência social, da cultura e da arte.
Há que se rever o papel importante que a comunidade no entorno da escola desempenha. Por isso, deve-se promover atividades integralizadas entre os estudantes, profissionais da escola, familiares, pessoas que moram e vivem naquela comunidade.
Há que se estabelecer uma parceria com universidades, erigindo observatórios locais, regionais e nacional a fim de levantar dados, compor estatísticas, e construir mecanismos preventivos adequados e viáveis.
Ainda há tempo. Nada está perdido. É necessário nutrir a esperança. Não há outro caminho. Para sobrevivermos ao caos vivenciado nos últimos anos, em que o fascismo e a violência foram utilizados para a produção da verdade, nossos pulmões devem respirar o “tempo da delicadeza” (canção “Todo o sentimento”, de Chico Buarque e Cristóvão Bastos, 1987).
A matriz da aprendizagem é a delicadeza. Só a delicadeza reverenciará os Direitos Humanos. Só a delicadeza desmobilizará exércitos e canhões. Só a delicadeza converterá a pólvora em pétalas. Só a delicadeza conseguirá mediar relações interpessoais. Só a delicadeza nos salvará de nós mesmos!
Sobre o autor
Carlos Alberto de Moraes é professor, pedagogo e membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Betim.
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