A liberdade poética encontra plena tradução na obra infinita de Fernando Pessoa. Esse lisboeta que viveu precoces 47 anos fez mais pela literatura portuguesa do que muitos outros escritores que existiram o dobro. Mesmo tanto tempo depois de sua morte, 87 anos pra ser exato, é impressionante como o legado desse modernista dialoga com os dias atuais e nos adverte para as necessárias facetas da personalidade humana.
Pessoa não tem tempo. A cronologia tradicional não cabe nos anos da infância, na formação escolar ou no trabalho poético que desenvolveu. É como se, tal qual um ser sobrenatural, flanasse por cima dos homens comuns e, de lá de cima, enxergasse toda uma realidade paralela, carente de uma ficção, de um apoio que o permitisse respirar para ali conseguir conviver.
“Outrora eu era daqui, e hoje regresso estrangeiro”, cravou Pessoa no livro do Desassossego, para se mostrar “forasteiro” da realidade que via e que ouvia. Por isso, concluía já estar velho de si. Apesar de já ter visto tudo, inclusive o que nunca viu e o que nunca veria, tinha uma certeza que nos tira do conforto quando lemos a constatação final dele de que “reinei no que nunca fui”.
Sabemos que, ao nascer, estamos sujeitos a uma civilização já posta, consolidada e que teremos de nos envolver nela e, naturalmente, deixar-nos ser envolvidos também. Sobreviver a esse afeto imposto exige trabalho que a Psicologia chama de processo de subjetivação. Por isso, o papel da arte é tão relevante por ela permitir uma transcendência da própria vida. Ferreira Gullar já nos esclareceu isso quando escreveu “que a arte é necessária porque a vida não é suficiente”.
É exatamente isso que Fernando Pessoa conseguiu realizar, de forma magnífica, quando criou seus heterônimos, seus outros eus, para dar vazão a essa vida insuficiente, limitada e muito castradora. Em janeiro de 1935, dez meses antes de sua morte, Fernando Pessoa escreveu ao amigo Adolfo Casais Monteiro uma carta em que explica a gênese dos heterônimos: “desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram”.
Essa permanente tentativa de Pessoa criar em torno dele um outro mundo o fez se autodiagnosticar como histero-neurestênico. Dessa histeria associada à grande fadiga do real, surgiram Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Transbordante de sentimentos dos mais variados tipos, Fernando foi capaz de se materializar – para além do corpo físico que carregava – em outras Pessoas.
O poeta chegou a confessar para o amigo Monteiro que tinha “tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este, mas com outra gente”. E, talvez desse hábito, tenha surgido uma das pérolas produzidas por ele: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Como diria Freud, “é impossível enfrentar a realidade o tempo todo sem nenhum mecanismo de fuga”. E Pessoa criou para si várias portas de fuga para que a centralidade de mundos distintos e possíveis estivesse à mão, assim que isso se fizesse necessário. “A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim”, escreveu o poeta.
Essa pletora de emotividade faz de Fernando Pessoa um poeta único e, por isso mesmo, múltiplo. Por ser múltiplo, é fácil classificá-lo como singular. Esse recurso subjetivo de vida, que tão bem retrata todo o conjunto de sua obra, permite aos amantes da linguagem desconstruí-lo e enxergar, por trás dessa máscara, a criança, a origem, a essência. Quem nos explica isso é o heterônimo Álvaro de Campos:
Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada…
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.
E volto à personalidade como a um terminus de linha.
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