As Cabanagens no Pará: pluralidade social e étnica na Amazônia

Leticia Barriga

[…] não me consta que alguma outra parte desta vasta Província escapasse ao furor dos malvados; assim [foi destruída] a maior parte dos Engenhos e Fazendas, dispersos ou mortos os seus escravos, consumidos os gados de criação, e extinta até a sementeira dos gêneros mais precisos ao sustento ordinário: e há distritos aonde não deixaram vivo nenhum só homem branco; e por toda a parte se sente a falta da população de todas as classes. (grifo nosso)

O trecho reproduzido acima, retirado do longo discurso feito pelo então presidente da província do Grão-Pará, Francisco José de Souza Soares d’Andrea, em 2 de março de 1838, possibilita entender algumas facetas do movimento conhecido como Cabanagem, ocorrido nesta província entre os anos de 1835 e 1840. As partes grifadas destacam alguns elementos que se pretende compreender aqui. Primeiro, a radicalização das ações de cabanos, vistos por um olhar colonialista, como o “furor dos malvados”, que não deixaram escapar nenhuma “parte desta vasta província”. Se destaca nessa afirmação seu abrangente raio de atuação, na medida em que os limites territoriais do antigo Grão-Pará equivalem, atualmente, a toda a região norte do Brasil. Segundo, a pluralidade étnica e social, quando se observa “a falta da população de todas as classes”; com a presença de negros escravizados que se dispersavam. Por fim, o ódio ao sujeito branco, português ou não, mas que carregava em sua cor todo o privilégio de uma sociedade fortemente marcada por continuidades coloniais e desigualdades étnicas e sociais.

Assalto dos Cabanos ao Trem. Alfredo Norfini, 1940. Museu de Arte de Belém

A documentação histórica sobre as batalhas cabanas trazem em suas narrativas a presença de uma variedade de sujeitos que atuaram levantando e defendendo suas bandeiras, construindo sentidos próprios para o movimento. A sua multiplicidade de significados permite compreender que estavam em jogo diversos projetos políticos e sociais, que, dialeticamente conviviam e se chocavam, e se transformavam. Demandas específicas, que iam da luta pela terra à luta pela liberdade política e social, de uma população fortemente explorada, que viu seus anseios não serem alcançados no pós Independência, com a integração do Grão-Pará ao Império do Brasil, em 1823. Entre mulheres e homens; tapuios, caboclos, negros e indígenas; das vilas e freguesias ao interior da floresta, às margens de rios e igarapés, as batalhas cabanas foram sendo tecidas por esta multiplicidade de sentidos, costuradas por meio de práticas culturais herdadas e partilhadas, numa dinâmica de aprendizagem da luta.

Ao passo que as batalhas avançavam província adentro (os Sertões da Amazônia) os conflitos tornavam-se mais radicalizados e mais plurais. Sabe-se que as batalhas da Cabanagem que aconteceram no interior, se entremearam pela mata fechada, em um labirinto de igarapés e furos de rios, muitas vezes de difícil acesso. Senhores da floresta, os povos originários e as comunidades tradicionais do estuário amazônico, eram conhecedores de suas potencialidades e de seus obstáculos, conhecimentos essenciais para as batalhas, o que implicava em avanços ou reveses no andamento da guerra, tanto para as tropas cabanas quanto para as tropas do governo provincial.

A efetiva participação da população local no interior do Grão-Pará, pluralizada em sua diversidade social e étnica, é perceptível nos documentos sobre Cabanagem, onde se pode compreender um protagonismo de suas ações. Isto se evidencia em várias situações ao longo que os conflitos vão se delineando. De reivindicações de lideranças indígenas atendidas como forma de conseguir o apoio de sua etnia, como ocorreu com o tuxaua Dionísio, da nação Mura, que teve suas reivindicações prontamente atendidas; à grupos organizados de escravos fugidos, que se aquilombavam e somavam-se ao movimento, dificultando as investidas das tropas provinciais; passando por estratégias utilizadas por mulheres cabanas que, como forma de retardar o avanço das forças inimigas, colocavam-se como obstáculos para que seus companheiros pudessem se dispersar.

As evidências desta diversidade de sujeitos e ações que conformaram o movimento cabano são muitas, que não cabem nos limites deste texto. Por ora, o que se pode destacar é que, ao contrário do que foi aludido pelo discurso oficial aos cabanos e suas demandas, de uma guerra sanguinária, realizada por pessoas “facinorosas” e “malvadas”, que compunham um corpo homogêneo, sem propósitos definidos, as ações empreendidas pela população cabocla da Amazônia oitocentista levaram a formação das Cabanagens. Lutas diversas de setores populares que, descontentes com o projeto de sociedade que os excluía, os reduzindo ainda a uma lógica colonial, estremeceram a ordem social estabelecida, colocando em xeque as vias institucionais como única possibilidade de alcançar as mudanças tão almejadas com um Estado independente. Mudanças estas que perpassavam pela garantia de direitos sociais e políticos, mas também territoriais e da própria liberdade.

 

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