Alfredo Johnson Rodríguez*
Parece que as nefastas mazelas da inusitada fusão de pandemia e pandemônio político que assola nossa convivência e a condição de confinamento físico a que estamos submetidos há quase sete meses, têm aguçado nossa percepção da realidade.
É inegável que nesse prolongado retiro sanitário ao espaço doméstico, é possível avaliar, ainda que em graus diversos de precisão e profundidade, a configuração social em que interagimos cotidianamente, nos espaços privado e público. Nessa perspectiva e para os fins desta coluna, comento analiticamente aqui a singular situação da educação infantil e do ensino fundamental.
Face à profusão de ambiguidades refletidas pelas medidas governamentais adotadas nesses níveis de ensino formal, em particular, no plano municipal, é imperioso inventariar as práticas escolares em curso, no bojo do presente “estado de calamidade pública”.
Como se não bastasse a desastrosa gestão do atual Governo Federal, evidenciada nas lancinantes contramarchas das políticas públicas, notadamente, de educação, saúde e meio ambiente, a maioria dos governos estaduais – como o de Minas Gerais – e municipais, adeptos ao “credo bolsonarista”, têm se mostrado indolentes e controversos na implementação de ações eficazes para equacionar a paralisia da educação escolar neste longo período de suspensão das aulas presenciais nas escolas públicas.
Os governantes conservadores de plantão minam o direito à educação e à aprendizagem, com qualidade social, de milhões de crianças, majoritariamente, das classes populares, fomentando a injustiça social. Esse drama, todavia, não afeta os/as estudantes nativos da classe média e da elite, pois as escolas da rede privada que eles/elas frequentam vêm, desde o início da quarentena, ofertando sistematicamente ensino remoto, usando sofisticados recursos tecnológicos e tentando preservar o padrão de qualidade educacional.
Constatamos que mesmo as raras iniciativas educacionais compensatórias, viabilizadas pela administração pública de certos estados e municípios, têm teor paliativo, carecem de articulação e qualidade, portanto, os resultados são incongruentes e artificiais.
Tomemos como exemplo Betim/MG, cidade dotada de uma ampla rede de escolas municipais, composta por 69 unidades escolares de ensino fundamental (com aproximadamente 40 mil estudantes matriculados/as) e 37 centros de educação infantil (com aproximadamente 7 mil crianças atendidas).
Em julho deste ano, o governo local, através da SEMED, lançou a plataforma “Estuda Betim”, nas versões web e app, alimentada numa nuvem por agentes externos, contendo atividades escolares complementares, gabaritos e eventuais vídeo aulas, por ano de escolaridade e componentes curriculares. Com essa medida esperava-se que os/as estudantes que dispusessem de dispositivos eletrônicos e acesso à internet, a despeito daqueles/as em condições adversas, usufruíssem desse recurso para manterem-se minimamente ativos em relação à rotina escolar.
Os gestores assumem, ainda, que tais atividades complementares poderiam “ser aproveitadas como parte da carga horária obrigatória do ano letivo, assim que houver normatização no município”. Mesmo não dispondo de dados objetivos, observações e levantamentos preliminares revelam a insuficiência e a ineficácia dessa iniciativa, além do pífio índice de acessos.
Em meados de setembro é veiculado “Termo de Acordo”, contendo “Aditamento ao Calendário Escolar 2020”, pactuado entre representantes do Executivo Municipal e dos trabalhadores em educação de Betim, com o aval do Conselho Municipal de Educação.
Substancialmente, visando a retomada do cumprimento da carga horária letiva. Esse documento pactua manter a suspensão das práticas escolares presenciais e, referenciado na legislação recente, convenciona, sob o rótulo de “Ensino Remoto”, (pasmem!) que “as tarefas dos/as docentes consistirão única e exclusivamente na elaboração de atividades para os respectivos anos em que atuam”, a serem a postadas quinzenalmente -reproduzindo o que já se fazia no “Estuda Betim” – e isentas de aferição e avaliação. Estipula-se, ainda, a distribuição de material impresso para os/as discentes que demandarem essa via alternativa.
Esta “nova” iniciativa pactuada não apenas reitera as inconsistências do “Estuda Betim”, mas, sobretudo, assume uma viés burocrático e oportunista, ao visar prioritariamente o cumprimento e a reposição de carga horária letiva, em detrimento do direito de milhares de crianças e adolescentes das classes desfavorecidas à oferta de educação pública de qualidade e de aprendizagem efetiva, além de subestimar as competências profissionais dos/das docentes. No mais, esse inócuo percurso, valendo-se da retórica jurídica da qualidade e do compromisso político com o desenvolvimento pleno dos/das educandos/as, escamoteia cinicamente a transgressão de princípios constitucionais fundamentais e a irrefutável violação do direito de aprender e do dever de ensinar.
Estamos, assim, diante de um flagrante pacto de mediocridade institucional, que sustenta e promove ignorância, desigualdade e exclusão social sem precedentes no Brasil. Nessas condições, o penoso contexto da crise sanitária que vivenciamos agrava-se com a negligência instituída frente aos direitos humanos. Provoca profunda indignação ver que a grande maioria de crianças e adolescentes em idade escolar seja privada do direito a aprender.
Afinal, aprender é direito de todos/as? Se sim, urge mobilizar-nos politicamente para garanti-lo, já. Por que não aproveitar a comemoração do Dia do/da Professor/a para articular e deflagrar esse movimento?
Feliz Dia, Educadores/as do Brasil!
* Doutor em Ciências Humanas (FAFICH/UFMG). Pedagogo na rede pública municipal de educação e Professor da Faculdade Pitágoras – Betim/MG.
Imagem de destaque: kian zhang / Unsplash