Agimos sem considerar os outros?

Emiliano Gambarotta

Tradução: Alexandre Fernandez Vaz

A perda da normalidade é uma oportunidade para vermos de maneira nova, a nós mesmos e aos outros.

As diferentes crises geradas pela Covid-19 tornaram visíveis uma série de questões que havíamos “normalizado”, questões que, sem muita demora, aceitamos. Em outras palavras, a desnormalização por que passamos lança luz sobre processos que impactam nosso cotidiano, mas que, em sua evidência, parece não ser um problema. Em particular, ela ilumina a dimensão social da vida, os laços que nos ligam aos outros, tecendo-nos em uma trama que, como acontece com qualquer tecido, não é a mera soma dos seus elementos. É essa percepção do social que leva a cada um de nós perguntar: não estaria eu agindo sem consideração pelos demais?

A Covid-19, com seu modo de transmissão e sua consequência pandêmica, que se expressa nos dados de infecções e óbitos diariamente relatados, coloca nosso vínculo social como questão de primeira ordem. Os cuidados com a saúde só terão plena eficácia se forem adotados socialmente, ou seja, por cada um na medida em que o faz coletivamente. Não basta você usar máscara na hora de sair, se eu não uso, porque o cuidado não é produzido apenas no plano individual ou familiar, ele é atravessado pelo social. A crise pandêmica quase nos obriga a ter um olhar que rompa com aquela famosa frase de Margaret Thatcher que o neoliberalismo alçou à condição de bandeira, segundo a qual “não existe sociedade. Existem homens e mulheres e existem famílias”.

Uma das manifestações mais poderosas dessa mediação do indivíduo pela sociedade encontra-se nas consequências (sociais) que as minhas ações (individuais) têm, embora elas possam ser não deliberadas, o que não quer dizer que não tenha sido eu que de fato as produzi. Ninguém embarca em táxi ou em ônibus, tampouco sai para passear com sem cachorro – sem máscara, como se o animal de estimação gerasse proteção contra o vírus –, ou abraça um amigo – usando máscara, como se isso tornasse desnecessário o distanciamento –, ou ainda vai a uma reunião, com a intenção de infectar os outros. Mas, em não poucos casos, sem o ter procurado e, talvez, sem o saber, é exatamente isso que se faz. Sim, claro que as diferentes ações nem sempre têm o mesmo impacto social. Ir a uma reunião de 8 pessoas potencialmente não tem as mesmas consequências que ir a uma com 53. Portanto, este é um dos critérios por meio dos quais procuramos organizar coletivamente as ações individuais, possibilitando um encontro, mas não o outro. Em um caso, o impacto é menor, mas não é nulo, pois isso só aconteceria se atuássemos em um vazio, numa espécie de ilha na qual fôssemos os únicos habitantes. A contraparte disso é que não existe ação individual neutra, ação que não gere consequências sociais.

Essa forma de perceber o próprio quotidiano implica em deslocar o foco, ou melhor, em ampliá-lo e torná-lo mais complexo, para que inclua o meu círculo íntimo e, ao mesmo tempo, a sociedade que o atravessa. Essa pode parecer uma questão “abstrata”, afastada do dia a dia, mas é justamente o contrário, uma forma de ver que não separa o fio do tecido, que não o abstrai de suas relações com os outros fios. Uma desnormalização do individualismo, entendido como uma forma de ver o mundo que coloca o eu no centro – ou seja, egocêntrica – tornando os outros um outro, sem perceber que para esse outro eu sou um outro, que não estou no centro, muito menos sou o centro. Não se trata de ser “tolerante”, se isso implica aceitar o diferente mesmo que a diferença nos incomode, tampouco predicar uma espécie de meio-termo que só procure diluir as diferenças, mas sim de perceber-me como outro sem deixar de ser eu. Eu sou um outro para esse outro, cuja percepção levo em consideração ao me perceber e percebê-lo. Neste contexto, o olhar egocêntrico, subjacente ao individualismo neoliberal, se nos revela em toda sua desconsideração.

No contexto pandêmico que temos atravessado, a expressão mais contundente dessa desconsideração está no exercício de uma liberdade que é vista como propriedade do indivíduo, indiferente às consequências que pode produzir, pois apenas aquelas que impactam diretamente suas vidas e sua família lhe são visíveis. Não estou dizendo que encontrar 53 em um local fechado, ou não usar máscara para passear com o cachorro não sejam um exercício de liberdade, mas, sim, que se trata de uma liberdade desconsiderada, produto de uma forma específica de ver que não deveria parecer-nos “normal”. Pois bem, esta forma de agir não é neutra, tem consequências sociais que se mostram nos relatos diários de contágios e óbitos. Uma de suas decorrências é fazer com que um dos fios da trama – eu ou outro – seja menos livre por estar infectado. O indivíduo pode não ver ou querer, tampouco ter procurado por isso, mas ele produz esse efeito. O exercício desconsiderado da liberdade pode fazer com que a sociedade, concretamente construída pelo nosso mútuo enlace, seja, no entanto, menos livre.

 

* O texto foi originalmente publicado em Diagonales.com, em 05.02.2021, sob o título de ¿Es usted un desconsiderado?

 

Imagem de destaque: Acácio Pinheiro/Agência Brasília

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