Abusos sexuais, política e liberdade de ensinar nas escolas

Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Sem dúvidas, uma das situações mais difíceis que vivi enquanto professor foi a de um caso de abuso sexual relatado por algumas alunas. Não vou descrever com detalhes o caso para não correr o risco de possibilitar a identificação da vítima e sua família. O que é possível dizer é que, anos atrás, após concluir um turno de aulas no ensino fundamental, um pequeno grupo de alunas veio falar comigo, dizendo que precisava compartilhar o caso de uma colega, que estava sendo abusada por um parente, dentro de casa. Conversei com as meninas, agradeci pela confiança, disse que iria ajudar e em seguida passei a situação para minhas chefias imediatas. A família foi chamada, o abuso foi confirmado e encaminhado para as autoridades que deveriam atuar diretamente nesses casos. Acho que pela primeira vez estive próximo de um estuprador. Terrível! Já observou a face profundamente entristecida da vítima? Já encarou o olhar abstruso do abusador? Sempre me pego lembrando desse dia, dessa violência!

Uma questão relevante a ser observada nesse caso é que a matéria que lecionava para a turma dava margem para muitos compartilhamentos e discussões durante as aulas. Isso, somado a outras atividades e reflexões desenvolvidas na escola, possibilitou que as estudantes soubessem da situação da colega, se solidarizem e tivessem coragem de buscar ajuda, com a expectativa de acolhimento. Ou seja, é possível pensar que, sem uma proposta pedagógica de estímulo ao diálogo e à construção conjunta de soluções para os conflitos, essa situação de violência não tenha sido relatada e devidamente encaminhada para verificação e posterior atuação da justiça. Quando observo tantos ataques à escola quanto à liberdade de ensinar, buscando restringir temas e práticas pedagógicas emancipadoras, consigo estabelecer uma relação entre o receio que indivíduos que cometem abusos contra crianças, e famílias que acobertam, têm de ser descobertos e denunciados.

Durante a campanha presidencial deste ano, a chamada pauta moral outras vez repercutiu muito, assim, assuntos como aborto, banheiros unissex e questões de gênero, voltaram com força ao debate público, especialmente nas redes sociais. Nos últimos meses, em diversas ocasiões tive que parar minhas aulas e ouvir o que estudantes queriam dizer sobre esses assuntos, pois estavam inquietos. Tive que orientá-los a falar com o devido respeito, sem partir para agressões em relação àqueles que pensam, ou simplesmente repetem discursos, vindos sobretudo da família e das igrejas de forma diferente. Fiz ponderações e outros questionamentos diante dessas temáticas consideradas polêmicas. Não poderia agir de outra forma, afinal, sempre digo para os estudantes: com respeito e embasamento, podemos discutir sobre tudo na escola!

Porém, existem aqueles que não pensam assim, existem profissionais da educação, familiares, políticos, religiosos, dentre outros, que preferem o silenciamento. Afirmações do tipo: “política não se discute”; “escola é lugar de ensinar somente as matérias listadas”; “educação vem de berço, vem da família”; etc., continuam a ser ditas dentro e fora da escola. Sob discursos mentirosos de doutrinação ideológica na escola, essas pessoas não conseguem ou não querem compreender que, ao tentarem limitar a liberdade de ensinar e aprender, tornam-se cúmplices das opressões e tornam-se doutrinadoras de fato. Ou vão dizer que o louvor às vertentes religiosas, a idealização da família e a defesa do patriotismo não são doutrinas ideológicas?  Ao defenderem a “Lei da mordaça”, a educação domiciliar, a escola burocratizada, essa parcela da população em nome de deus, da moral ou de qualquer outro pretexto, ao invés de protegerem a infância e a juventude, na realidade colaboram para a manutenção das violações, inclusive uma das mais brutais e condenáveis, que é a violação sexual de crianças e adolescentes.

Para saber mais
Violências e abuso sexual: Guia de Educação e Proteção da Criança e do Adolescente em tempos de COVID-19. Acesse aqui.


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