Joab Grana Reis1
Os processos de independências estão sendo pensados para todos os grupos sociais? Com este questionamento, trazemos mais um Giro do Bicentenário para pensar as narrativas de estudantes universitários com deficiência no ensino superior, residentes em município do estado do Amazonas, que retratam trajetórias educacionais demarcadas por diversos desafios, a começar pelo descrédito social, uma vez que a concepção da deficiência, pautada na incapacidade, permeia, ainda, a dinâmica sociocultural na qual estão inseridos. Trazemos, hoje, uma história de vida. A acadêmica do curso de Direito, ao rememorar seu percurso formativo, lembra de momentos em que sua condição de pessoa com deficiência visual, foi considerada como impedimento para ir à escola e aprender com qualquer outro aluno.
[…] Na verdade, até tem, mas nem todo mundo estuda. Eu conheço outros deficientes visuais aqui em Benjamim, que eles não estudam. Eu conheço uma amiga que é bem mais velha que eu, mas também tudo depende da família. A gente mora no interior do Amazonas, então não é toda família que incentiva um filho deficiente visual a estudar. Tem muita gente que “Ah, ele é deficiente. Então, vamos deixar ele aqui em casa, vamos colocar ele aqui na frente sentadinho”. Inclusive, quando meu pai e minha mãe me colocaram para estudar, houve muita gente que foi contra. Por exemplo, “Ela é cega!” Gente da família mesmo, da família do meu pai. Muita gente chegava e dizia “Olha…” Disseram que a minha mãe estava fazendo isso para se livrar de mim, para não ter que me cuidar, que eu não ia aprender porque eu sou cega. E eu lembro, eu era pequena, mas eu me lembro. Então, era esse tipo de coisa que me fazia pensar “Eu não quero estudar! Eu não vou estudar. Eu não tenho capacidade para estudar.” Só que com o tempo, eu comecei a me entrosar com os meus colegas, a me enturmar e comecei a entender o que os professores falavam lá na frente, apesar de não estar vendo, eu ouvia e entendia. Então, eu pensava assim: “Se eu consigo entender, eu consigo estudar, se eu consigo entender, eu estou aprendendo […] (RIO JAVARI, DV, TABATINGA, 2019).
Desta forma, os atributos que causam descrédito e desqualificam a identidade social das pessoas com deficiências estruturam-se como marcadores de exclusão que acabam permeando o imaginário social, desencadeando atitudes de preconceito, de estereótipo e de discriminação. Assim, esses aspectos psicossociais se constituem de forma muito perversa na vivência e experiência de cada pessoa com deficiência.
Ao tratar da realidade amazônica, destacamos os rios, pois eles são as ruas e as estradas que conduzem a população aos municípios e às demais localidades (comunidades ribeirinhas) no estado do Amazonas. Essa realidade de mobilidade e deslocamento se diferencia dos demais estados brasileiros. Portanto, a referida característica geográfica é abordada na vivência da acadêmica com deficiência visual ao mencionar as condições de acessibilidade, de mobilidade e de deslocamento para chegar até a universidade. “A minha dificuldade também é em relação à locomoção, porque eu moro aqui em Benjamim Constant e a faculdade é em Tabatinga. Então, […] quando o rio está cheio, eu acho maravilhoso, eu vou e volto perfeitamente”.
Tabatinga é um lugar fronteiriço e peculiar em relação às demais cidade do estado do Amazonas, devido à dinâmica social, econômica e cultural da tríplice fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, apresentando conurbação com a cidade colombiana de Letícia. Já o município de Benjamin Constante fica localizado à margem direita do Rio Javari, afluente do rio Solimões, próximo à Tabatinga e o deslocamento ocorre por meio de transporte fluvial.
A enchente e a vazante dos rios constituem-se como demarcadores das condições de acesso à cidade no Amazonas. Isso representa, para as pessoas com deficiência, maior dificuldade no período da seca, devido ao deslocamento ocorrer nas pequenas pontes de madeira improvisadas, pois, somente durante a enchente, o transporte fluvial (barco/balheira) consegue ancorar no porto da cidade.
Então, pensar a educação inclusiva para estudantes universitários com deficiência exige a retratação das diferentes realidades que constitui o nosso país, para que as peculiaridades (geográfica, cultural, econômica etc.) possam ser (re)pensadas e consideradas. Outro destaque são as “vozes” de sujeitos, historicamente silenciadas ao logo do tempo, pois revelam experiências, saberes e aprendizados que poderão contribuir para repensar, a partir da realidade local, as políticas institucionais de inclusão, inclusive, no ambiente da sala de aula. Isso se dá porque eles têm muito a nos dizer, no entanto, essas vozes, ainda, permanecem silenciadas em decisões que envolvem seus próprios direitos. Em outras palavras, fala-se “deles” e não com “eles”.
1 – Professora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Vice Coordenadora do Grupo de Pesquisa Educação Inclusiva e Aprender na Diversidade.
Imagem de Destaque: Arquivo pessoal