A questão racial é uma oportunidade para falar sobre os alunos

Daniel Machado da Conceição

Quero refletir a respeito da formação de professores e a necessidade dos currículos incluírem disciplinas que abordem a questão racial, uma vez que observo uma resistência ao tema em todos níveis de ensino. Recentemente, ao ler o livro Na minha pele (Objetiva, 2017), do escritor, ator e diretor Lázaro Ramos, uma passagem chamou minha atenção.Ela destaca a palavra identidade, que segundo o autor passamos a escutar com maior frequência, o que o fez ponderar que o debate racial não é uma questão dos negros, chegando, então, àconclusão de que se trata de “uma questão de qualquer cidadão brasileiro, ela diz respeito ao país, é uma questão nacional. Para crescer, o Brasil precisa potencializar seus talentos, e o preconceito é um forte empecilho para que isso aconteça” (RAMOS, 2017, p. 12).

Concordo com ele, o preconceito é um empecilho que institui barreiras que separam os sujeitos e as oportunidades. Uma das barreiras está relacionada ao constrangimentoque impede a inclusão do tema e de conversas sobre ele em sala de aula. Afinal, temos tanto a falar sobre a estrutura escolar, seus espaços, processos, documentos, metodologias, abordagem, conteúdos, avaliações internas e externas etc. Realmente, não sobra tempo!

Mas, acontece que os números da desigualdade racial no país são alarmantes e, infelizmente, refletem parte do que a população negra vivencia em seu cotidiano. Um dos dispositivos para propor rupturas ou a mínima garantia dos direitos está na legislação, isto é, na criação de leis. As leis significam passos importantes na busca por transformação, entretanto, também atestam nossa falha civilizatória que exige uma legislação para nos lembrar o que não queremos ver, Lei 7.716/1989 – crime de racismo; Lei 9.459/1997 – crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; Lei 10.639/2003 – estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira; Lei 11.645/2008 – obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena; Lei 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial; e, Lei 12.711/2012 – regulamentação das ações afirmativas em universidades e institutos federais.

Essas leis falam sobre a questão racial em nossa sociedade, algumas estão diretamente ligadas à educação, entre elas a que obriga a temática história e cultura afro-brasileira e indígena no conteúdo curricular e a regulamentação das cotas raciais. Ações que precisam ser entendidas, o mais breve possível, como prospectivas e não apenas retrospectivas. Quando falamos em prospectivas, é de projetar a transformação do cenário social e de sua estratificação que estamos falando.

Um caminho longo precisa ser percorrido, o trem da história está passando, precisamos escolher entrar nele ou ficar de fora. O que significa esse embarque? Um primeiro passo é reconhecer o racismo naturalizado nas instituições, como ele estrutura as relações e como promovemos sua reprodução. Precisamos dar passos em sua direção, o constrangimento que sentimos ao falar sobre a questão racial deve mobilizar nosso estudo pessoal, pois, não vamos conseguir ensinar aquilo que desconhecemos. Conversar abertamente sobre o tema é igualmente primordial. Em seguida, ao despertar sobre a necessidade de debater a questão racial, começamos a deixar algumas práticas de lado (piadas, comentários pejorativos etc.) e passamos a incluir outras ações como até mesmo revisar os nossos referenciais teóricos.

Estas são ações simples que permitem transformações, mas, infelizmente, ainda hoje continuamos identificando na formação dos futuros educadores a ausência do debate racial e a invisibilidade de autores negros na bibliografia das disciplinas. Isso acontece porque preferimos nos manter descolados da realidade e mergulhados em nossa zona de conforto, pois, é mais fácil reproduzir do que reconstruir.

Tal constatação favorece o destaque de um trecho do texto Não é próprio falar sobre os alunos, que compõe o livro Conversas sobre Educação (Versus, 2015), de Rubem Alves. Ele faz uma observação interessante sobre os professores e os assuntos que por eles eram discutidos em conversas rotineiras durante as viagens de trem entre Campinas/SP e Rio Claro/SP. Segundo o autor, os professores falavam apenas sobre as escolas, sua cosmologia era composta por colegas, salários, diretores, reuniões, relatórios, férias, programas e provas. Triste, percebe que: “nunca, nunca mesmo, eu os ouvi falar sobre os seus alunos. Parece que nos universos em que viviam não havia alunos, embora houvesse escolas. Se não falavam sobre alunos, é porque os alunos não tinham importância” (ALVES, 2015, p. 69). No final do texto, Rubem Alves conclui esperançoso: “Eu sonho com o dia em que os professores, em suas conversas, falarão menos sobre programas e pesquisas e terão mais prazer em falar sobre os seus alunos” (p. 71).

No meu entender falar sobre os alunos é pensar sobre as abordagens, mediações, reconhecer desigualdades e diferenças. Falar sobre os alunos é compreender contextos, potencializar vidas sem a modelagem do preconceito, derrubando as barreiras discriminatórias que são colocadas como empecilhos e dedicar atenção para superar os constrangimentos. Devemos refletir sobre os seus e os nossos alunos, eles representam uma pluralidade de situações, emoções e possibilidades. Falar sobre eles é falar sobre a questão racial e outros tópicos intersecionais, como: classe, gênero, idade, região/local etc. Quando realmente estivermos interessados em falar sobre os nossos alunos, falaremos sobre os temas que fazem referência a eles. Ao atingir esse estado nossas discussões em sala serão mais conscientes e não apenas impostas por força de lei.

Devemos colocar em prática as ações que transformam, entendendo que esta não é uma questão dos negros, e, sim, de cidadania, uma questão nacional. Não é fácil, o passo inicial é reconhecer o constrangimento que o tema causa e em seguida continuar avançando pelo caminho que permita falar mais sobre os alunos, pois, quando falarmos sobre eles, então, perceberemos que a questão racial sempre se faz presente.


Imagem de destaque: “Respeita as Pretas”, debate promovido pelas Secretarias de Políticas para Mulheres e de Promoção da Igualdade, na Escola Estadual Severino Vieira
Foto: Carol Garcia/GOVBA

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