A poética política de Rosa Luz

Cauê Assis de Moura1

Marcos Ribeiro Mesquita2

Rosa Luz é youtuber, rapper, atriz, performer, poeta. Ela transita entre as múltiplas expressões e linguagens artísticas e se transforma em muitas, nos mostra suas diferentes versões de si, amplifica sua voz. A arte da palavra, a arte da imagem, a arte da música. Suas canções expressam uma poética e uma política que colocam no centro uma narrativa não mais determinada por uma posição subalternizada, mas caracterizada pela afirmação da existência. É ela mesma que nos diz isso na música De clandestina à puta: “[…] é por nós e para nós. Por todas as trans/travestis que tentam sobreviver aqui e ali. Estão pensando o que? Que íamos ficar caladas neste [c]istema que tenta nos matar ou nos enlouquecer?”.

Rosa é um corpo atravessado por uma encruzilhada identitária produzida por uma inseparabilidade estrutural entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, e suas expressões artísticas trazem fortemente estas marcas.  Em uma de suas músicas, a “Afrotrapfunk”, ela canta a violência sofrida pelos corpos negros trans/travestis, mas também a resistência construída através de um empoderamento que se dá processualmente e na coletividade.  Flerta com o feminismo negro e o transfeminismo como expressões e movimentações de um tempo marcado pela conquista de espaço para a visibilidade dessas lutas. Reivindica a cidade para que todas/os/es transitem nela. Destacamos um trecho da música: 

Preta, puta, pobre de mãos dadas bem juntinho
E a corte do opressor que não me quer ver sorrindo
Me empoderei devagar e não sozinha
Na gana, nos processos, na rua ou na esquina
No bang eu chego junto, explodindo teus assuntos
Preta, puta, pobre e trans
No holocausto me esqueceram […]
Liberdade para corpos marginalizados
Transcenderem nessa porra de cidade

De forma interseccional a poética das suas músicas rasga, denuncia, celebra, produz deslocamentos e é eminentemente política. Traz a força das vozes que gritaram, escreveram, que ousaram existir antes dela. Estas pessoas sabem muito bem que quando uma trans/travesti, sobretudo negra e periférica, ousa erguer a voz, será sempre fortemente lembrada que este é um ato que pode custar sua própria vida. 

Em junho de 2020, Rosa publica em seu canal um vídeo intitulado “Porque fui ameaçada de morte?”, onde relata as intimidações proferidas por conservadores de extrema direita. As ameaças surgiram após o lançamento de um single que denunciava o racismo no mercado da música brasileira e que tinha na capa uma arte em que ela segurava a cabeça decapitada de um homem branco, que foi automaticamente associada ao Presidente da República. 

No decorrer do vídeo Rosa evidencia o fato de que o “Brasil é um país que foi ensinado a odiar corpos trans, negros e LGBTs que se posicionam”. Isso fica ainda mais contundente em um momento de forte disseminação de fake news e discursos de ódio, como o atual. Ela faz uma denúncia de caráter internacional e um pedido de ajuda, utilizando-se do YouTube como um espaço para se fortalecer, resistir, ir de encontro a um cenário de recrudescimento do conservadorismo. 

A despeito das ameaças e dificuldades, Rosa segue firmando sua arte – poética e política – e afirmando seus posicionamentos, visões de mundo, sua existência. Suas músicas, performances e produção de conteúdo expressam e discutem todas essas dimensões, produzindo rupturas nas imagens hegemônicas acerca dos corpos trans/travesti e suas interseccionalidades. 

Sua arte toma o espaço da rua, invade as instituições culturais e ocupa a internet a partir de seu canal Ros4, espaço estratégico para disputar narrativas, dialogar com o maior número de pessoas e instituir sua guerrilha cultural; sua arte chama, convida pra chegar junto, pra fazer ecoar o grito de quem quase nunca é ouvida/o. “Rosa Luz que arma o baile, denuncia, cola em mim. Nosso som é resistência, tanta rima, tamo afim”, como na música Rosa Maria codinome Rosa Luz. . 

E nesse tom e ritmo, narrativas como a de Rosa Luz, vêm firmando bandeiras de luta e disputando espaço na sociedade, proporcionando costuras possíveis de discursos contra-hegemônicos e críticos em um momento em que isso não só é necessário, como fundamental para a manutenção da nossa democracia.

 

1Graduando do curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Homem Trans e membro do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS).

2Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).


Imagem de destaque: TransBlackAngel

 

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