Não estamos falando aqui de bingo. Tratamos aqui de uma pedra que está cantada em melodias produzidas em décadas de nosso passado recente talvez hoje até lembradas, mas não levadas a sério em suas mensagens, como se o vício de seus ritmos e letras decoradas ofuscassem o brilho de suas elaborações. Seus arranjos do passado, muitas vezes parecem velar a atualidade de suas proposições. Em 1984 Caetano Veloso já se lamentava, desconfiando ser um tanto falaciosa a tal “redemocratização” que no início daquela década assistia…:
“Será que nunca faremos senão confirmar
a incompetência da América católica
que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será, será que será que será,
Será que essa minha estúpida retórica
terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?”
Caetano Veloso – Podres Poderes
Na verdade a resposta é sim, Caetano, estamos em 2017 e o nível da política brasileira continua lastimável. Pelo jeito a sina dos “zil anos” vai se cumprindo. Para o desespero dos que já não dão crédito à Globo – digo, Rede Golpe de Televisão.
Quatro anos depois do lançamento dessa música de Caetano Veloso, Cazuza complementou seu conteúdo em 1988, mostrando que o processo “redemocratizador” pós-militar era uma aberração, um teatro bem preparado:
“Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
[e………….são esses mesmos que] Transformam o país inteiro num puteiro,
Pois assim se ganha mais dinheiro.
A tua piscina tá cheia de ratos,
Tuas ideias não correspondem aos fatos,
O tempo não para.
Eu vejo o futuro repetir o passado,
Eu vejo um museu de grandes novidades.
O tempo não para… não para, não…. não para.”
É verdade. No Brasil o tempo não para, mas a política está estacionada, bem assentada talvez em nossa herança colonial mal elaborada nos séculos XIX e XX (e acreditem que há quem me ache exagerado nessa afirmação…). Mas em 1964 certamente ainda estamos bem fixados. O verniz do militarismo caiu, mas o osso duro do compadrio, das resoluções na calada da noite, do cinismo, do nepotismo, do privilégio, do voto de cabresto, do personalismo, do favor, do patrimonialismo, da imprensa de monopólio, do judiciário político, da resolução de cima para baixo, do latifúndio, da privatização… bases sólidas esculpidas pelos militares, apoiados pelos civis conservadores que plantaram a infelicidade de suas gerações futuras. Essas bases continuam intactas!
Mas é incrível que apesar de tudo isso os espetados pelas telas, ou seja, os telespectadores, de “Malhação” ou das atuais “séries” provindas de outras Netfontes ainda acreditem que têm um dia “super”, uma noite “super” e uma vida “super”. Não querem saber do que os Engenheiros do Hawaii já sabiam em 1991. Ou seja, saber daquilo que de fato está atrelado a essa vida “super”:
“Um dia super, uma noite super, uma vida super-ficial,
Entre as sombras entre as sobras, da nossa escassez.
Um dia super, uma noite super, uma vida super-ficial,
Entre cobras, entre escombros, da nossa solidez.
Nas grandes cidades, no pequeno dia-a-dia
O medo nos leva a tudo, sobretudo à fantasia,
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia.
Nas grandes cidades de um país tão violento,
Os muros e grades nos protegem de quase tudo.
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada,
E nada nos protege de uma vida sem sentido.
Um dia super, uma noite super, uma vida super-ficial,
Entre as sombras entre as sobras, da nossa escassez.
Um dia super, uma noite super, uma vida super-ficial,
Entre cobras, entre escombros, da nossa solidez.”
Engenheiros de Hawaii – Muros e Grades
Se os ricos antes prendiam os indesejáveis. Agora prendem os indesejáveis e também se prendem, não percebendo o quanto são também indesejáveis para si próprios frente à beleza que veem nos objetos e na eficiência das máquinas.
Em outra prisão estão os que vivem a vida de gado, subjugados pela moral de rebanho, pela falta do mínimo, pela mão invisível do mercado, pela dinâmica implacável da formação do exército de reserva, pela lei de ferro da oferta e da procura. Cantou esse povo Zé Ramalho, em 1979, esse “povo marcado, povo feliz”. Cantou aqueles que:
“Contemplam essa vida numa cela,
[e] esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível
[Já que]
Não voam, nem se pode flutuar.”
Zé Ramalho – Admirável Gado Novo
A esperança popular por essa nova possibilidade de ver a patética organização humana atual ruir, toma outros foros em Caetano Veloso. O fim desse estado de coisas só viria se acompanhado de uma tragédia, ao constatarmos que não podemos contar somente com nosso potencial estético que é enorme. Ficou claro, Caetano, que os “Tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais” NÃO “nos salvam ou nos salvarão dessas trevas”.
Quanto texto bonito já lemos desde o golpe, quanta análise interessante, quanta arte visual sofisticada e impactante… Mas o Drácula empedernido disse que não sai de lá e não sai. (e ponto final.). Essa atitude violenta de um burro empacado deve criar lá na outra ponta sua contrapartida. É nesse sentido que a outra invectiva lançada pelo cantor baiano talvez seja a mais verossímil de acordo com o que nos têm apontado os últimos desdobramentos da lastimável história brasileira, infelizmente:
“Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos Gerais?”
Caetano Veloso – Podres Poderes
Na verdade essa pergunta lançada se mostra ser um diagnóstico preciso. Paisanos e capatazes, o morro e o asfalto, compartilham no Brasil da burrice que os une: a burrice teleguiada que vem das antenas de TV – e da internet que não desbancou a TV como referência de estética, inclusive para os próprios “youtubers”. A voz do Um, que ordena fazendo cócegas nesses e naqueles!
Diante da inquestionável necessidade de se exterminar o monopólio televisivo no Brasil, o que restará: a burrice? Sim. A burrice e a violência. Somos o país das emoções, não é assim que nos ensinaram? A emoção da vitória ou da derrota do meu time, a emoção do beijo ou do tapa da novela. E assim se (des)faz política no Brasil. Já havia dito Cazuza em 1988:
“Nas noites de frio é melhor nem nascer,
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer.
E assim nos tornamos brasileiros.”
Um pouco de televisão para acalmar:
“É sangue mesmo não é Merthiolate,
Todos querem ver e comentar a novidade
Que emocionante uma acidente de verdade,
Todos satisfeitos com o sucesso do desastre!
Vai passar na televisão, vai passar na televisão!”
Os jornalecos pinga-sangue dão a medida certa do apreço que há entre nós pela violência cotidiana, sensação pura, banalizada, gozada, transformada em piada. E olhem que esse verso foi composto pela genialidade de Renato Russo em 1986. Continua atualíssimo. Só que agora as imagens são gravadas e disseminadas também pelos celulares.
E a infância que tenta alcançar a altura dos vidros de vossos carros para pedir uma moeda? Melhor não saber de nada disso. Muda o canal aí, por favor…
“Meninos de rua, delírios de ruína
Violência nua e crua, verdade clandestina
Delírios de ruína, delitos e delícias
A violência travestida, faz seu trottoir
Em armas de brinquedo, medo de brincar
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear!
Um dia super, uma noite super, uma vida super-ficial,
Entre as sombras entre as sobras, da nossa escassez.
Um dia super, uma noite super, uma vida super-ficial,
Entre cobras, entre escombros, da nossa solidez.”
Engenheiros de Hawaii – Muros e Grades
Indignado com questões parecidas com as nossas que temos de enfrentar hoje Renato Russo eternizou as seguintes frases em 1989:
“Disciplina é liberdade,
Compaixão é fortaleza,
Ter bondade é ter coragem”
“Compaixão é fortaleza”, lema da fraternidade. Se juntar aos demais que sofrem para lutar contra a opressão. Se reconhecer no outro pode ser o caminho para uma fortaleza. Clássico do marxismo. “Ter bondade é ter coragem”. Se a regra é o egoísmo e a perversidade é preciso ter coragem para se opor a essa lei. A bondade é contrária ao individualismo tirânico. Clássico da moral franciscana. “Disciplina é liberdade”, frase retirada dos estoicos. A “disciplina” enquanto modo de organização das disposições e potencialidades humanas tem sido utilizada pelas instituições – a medicina, o estado, o capital – para potencializarem as ações dos sujeitos em prol de suas demandas. A pergunta que resta do comentário de Renato Russo: e quando os sujeitos perceberem que podem usar essa tecnologia de si que é a disciplina para seus próprios fins?
Talvez de uma convulsão na Venezuela, quando (e se) a China der o seu apoio nesse conflito, de um estímulo externo venha o impacto material necessário para que os brasileiros acordem do sono eterno em berço esplendido em que se encontram, embalados pelas fantasias mixurucas repisadas noite e dia pela onipresente rede golpe de televisão…