A utilização de imagens das crianças feita pela televisão e por outros meios de comunicação, vez em quando, aparece como tema de acirrados debates. Seja participando, esporadicamente, de programas de auditório ou protagonizando enredos como atores-mirins, a questão costuma aparecer na própria mídia, muitas vezes trazida por entidades de defesa das crianças e dos adolescentes, por organismos governamentais, por educadores, dentre outros. Tantas vezes contraditórios, há os mais disparatados posicionamentos sobre o tema.
Em agosto do ano passado, o juiz da infância e juventude do Tribunal do Trabalho da 2ª Região de São Paulo (SP), Flávio Bretas Soares, realizou uma verdadeira “caçada” em defesa da não participação das crianças na mídia. Esse juiz foi responsável por dois atos de impedimento: proibiu os atores-mirins Kaleb Figueiredo, de 10 anos, e Matheus Braga, de 13, de atuar no musical “Memórias de um gigolô” – adaptado por Miguel Falabella do romance homônimo de Marcos Rey – por considerar o texto inapropriado para os meninos e, igualmente, impediu Matheus Ueta e Ana Julia de apresentarem o programa “Bom Dia e Cia” – transmitido pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) e destinado ao público infantil – por considerar que o horário de trabalho das crianças à frente dessa atração televisiva conflitava com os horários escolares.
No caso da proibição imposta a Kaleb Figueiredo e Matheus Braga, Miguel Falabella – diretor do espetáculo – proferiu um discurso em tom de protesto contra a decisão do juiz afirmando ser um retrocesso à censura. Já no caso das crianças do “Bom Dia e Cia”, a direção do programa tomou medidas mais cautelosas e modificou o horário de trabalho de Matheus e Ana Julia, adequando a atração às exigências legais. Assim, entre os que defendem a participação das crianças em espetáculos teatrais (como no caso de Miguel Falabella), os que adequam os horários de trabalho das crianças nos programas televisivos (como no caso do SBT) e aqueles que querem, a todo custo, fazer valer o “direito das crianças”, parece haver uma dissonância que deixa até mesmo Neil Postman3 (2005) de “queixo caído”. Embora não concordemos totalmente com a tese desse autor de que a infância esteja desaparecendo, compreendemos, a partir de sua obra, que novos lugares para a infância surgem por meio das contradições da contemporaneidade. Em protesto contra a censura dos meninos na peça, Miguel Falabella afirma que “o teatro, [dirigindo-se ao] senhor juiz, muito pelo contrário, ensina a esses dois jovens talentos a dominar a língua, a se expressar com clareza, a aguçar o raciocínio e a olhar o mundo com os olhos da poesia. E o teatro musical, ainda por cima, lhes ensina a música”. Entretanto, é paradoxal – para não dizer incoerente – defender a participação de crianças de 10 e 13 anos em uma peça que narra a história de paixão entre um cafetão e uma prostituta e cuja classificação indicativa é de 14 anos. É indefensável, mesmo com argumentos de que essa participação instrua, eduque e sensibilize, conforme defendido por Falabella.
Tantas discrepâncias não param por aí. Atualmente, está em exibição o programa The Voice Kids. No domingo, 28 de fevereiro, chamou-nos a atenção a apresentação de três meninas: Jamille Silva (11 anos), Júlia Ferreira (11 anos) e Laura Schadeck (12 anos), que fazem parte do time cujos técnicos são os cantores da dupla sertaneja Victor e Léo. Elas deram um show a parte. Como guerreiras em um campo de batalha – intitulado assim pelo próprio apresentador, Tiago Leifert – não esconderam a tensão e o nervosismo. Sentimentos esses transmitidos também aos telespectadores pela forma como tudo foi armado. Ao assistirmos em casa, é improvável ficarmos impassíveis diante do espetáculo e quando nos damos conta, estamos compondo a torcida de um ou outro participante.
São crianças talentosas em busca de sucesso e de fama. A idade, o carisma, a maneira de se apresentarem e o talento “quase inato”, deixaram o público sem saber como escolher apenas uma dentre as três. Nessa fase do reality, os responsáveis por essa tarefa foram os técnicos (Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Victor e Léo). Ainda assim, há o envolvimento tácito dos que assistem de casa. A “luta” entre as menininhas é um jogo tenso, “de vida e morte”, pois as duas que “perderem” precisam deixar o programa. Incontestavelmente, ao contrário do que ocorre em muitas disputas em que o jogo torna-se voraz, cheio de ódio e sangrento, as três meninas apoiavam-se umas às outras, pois se abraçavam e trocavam olhares de cumplicidade, conforme destacou um dos técnicos: “as três se abraçaram cantando juntas, se olhando, se apoiando e lá no ensaio foi do mesmo jeito. A coisa mais linda que pode acontecer aqui neste programa é ver três pessoas que, entre aspas, tecnicamente, estão competindo, não competem entre si, uma apoia a outra. Isso se chama amor” (Léo). O apresentador, efetivando a ideia de arena de luta, convoca as garotas para o embate com essas palavras: “Time de Victor e Léo. Que lindas vocês são! Que comece a batalha!”. E o jogo começa.
A apresentação foi perfeita do início ao fim. Todavia, marcada pela avaliação dos técnicos (Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Victor e Léo), a parte decisiva ainda estava para começar. A apreensão e o nervosismo das garotas que, no início, já pareciam enormes, neste momento, eram infinitamente maiores e, quando surgiam na tela os rostinhos de cada uma, isso ficava mais evidenciado para quem assistia de casa. Entre caras e bocas, os técnicos também surgiam na telinha dando o ar de suspense e de surpresa.
E eles – esses mesmos técnicos – com jeito de quem são donos da verdade absoluta, iniciam o blá-blá-blá vendendo, aos telespectadores, a imagem de “exímios” avaliadores de meninos e meninas, deixando entrever em seus argumentos o quanto carregam de amenidades os próprios comentários. O jogo de cena é evidenciado nos discursos e nas imagens. Dentre tantos outros, selecionamos dois comentários feitos pelos técnicos na tentativa de explicar o que ocorre com estas crianças que se propõem a subirem ao palco:
“Só uma observação eu gostaria de fazer por achar importante: as crianças [quando] sobem aqui no palco, são crianças, vestidas de crianças, se comportam como crianças. Isso é tão valioso pra gente. Por mais diverso que seja o universo da música para vocês, com mil influências, vocês não estão saindo do trilho da infância, isso é uma delícia! (…)” (Ivete Sangalo).
“Elas são extremamente disciplinadas. Houve alguns pequenos ajustes que a gente pôde atentar junto a elas nos ensaios e elas levaram isso a sério. Parecia que era só uma coisa jogada ao vento e não era. Elas pegaram isso e usaram com veemência, com seriedade!” (Victor).
A partir dos fatos apresentados, presume-se que a questão está carregada de problemas. Em que medida a participação de crianças em eventos desta natureza não lhes rouba, efetivamente, um pedaço da infância, quiçá a infância inteira? Será mesmo que esse intenso envolvimento com a preparação e com a disputa não lhes tira do trilho da infância? Por serem disciplinadas e sérias – conforme dito por um dos técnicos – é possível conciliar as outras atividades da vida com esses ensaios e treinamentos? A vida dá uma pausa para a competição e na sequência volta ao normal? Nas outras atividades em que estão inseridas, essas crianças deixam de ser veementes, sérias e sinceras? Os possíveis deslumbramentos alteram a rotina (e a vida) dessas e de outras meninas e meninos? Tais programas “mexem” positiva ou negativamente com as crianças que deles participam e assistem? E como ficam as crianças “derrotadas”?
A construção corporativa da infância – como bem apontaram Joe Kincheloe e Shirley Steinberg4 (2001) chega a seu ápice com programas televisivos e peças teatrais desse porte. A intensa exposição das crianças na e pela mídia (KINCHELOE e STEINBERG, 2001) produzida pelas grandes corporações do entretenimento faz com que as meninas do The Voice Kids, os atores de “Memórias de um gigolô” e os apresentadores-mirins do Bom Dia e Cia passem horas trabalhando em gravações e ensaios e, desse modo, não estariam com suas infâncias afetadas pela experiência do trabalho (que é subsumida pelo vislumbre do espetáculo)? E mais: muitas vezes, nos curvamos frente ao talento dessas crianças e nos esquecemos – ou não atentamos – para o fato de que meninos e meninas são submetidos a extenuantes atividades marcadas fortemente pela barganha capitalista (capital X trabalho). Como educadores, nós também nem sempre conseguimos fazer a crítica. Por vezes, não nos toca – e até aplaudimos emocionados – as crianças que participam dos realities shows televisivos, mas não nos importamos em criticar e culpar, em nome da educação dessas “outras” crianças, as famílias camponesas (ou das comunidades carentes dos grandes centros urbanos) que – conforme nossas falas efusivas e sentenciosas – “exploram” e “violentam” os filhos nos trabalhos braçais nas lavouras (ou nos cuidados para com os/as irmãos/ãs mais novos/as) deixando-os fora dos bancos escolares. As famílias dessas crianças, muito mais do que daquelas outras, implicam-se menos no futuro de seus/suas filhos/as e precisam ser enquadradas por abuso e exploração de trabalho infantil? O que difere um trabalho do outro?
São questões para pensar. Quisera ter as respostas para tantas perguntas. A certeza que temos é que as crianças estão sob o jugo dos adultos e, em muitos casos, se submetem a desejos que lhes escapam.
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