A menina que pintava versos

Ivane Perotti

Dobrou joelhos, o sol materno. Berço das palavras tintas. Infindas. Acorda o céu. Liláceas luzes desprendem braços. Abraços. Carinhação. Versos liberam rimas. Anversos. Fina. Escanção.   Ana abre sílaba. Lírica. Bíblica. De nascimento. De pai e mãe. Martins. Corre o passo. Um soneto. Regaço.   Outra. Mais outra. Tradução. A Memórias drummondiana resgata, perdido, coração:/ Nada pode o olvido/contra o sem sentido/apelo do Não. /

Quatro apoios. Desce a escada. Testa em reta. Atleta. Da oração: As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão. Ao pé da rima, Ana ergue o rosto: Mas as coisas findas, /muito mais que lindas, /essas ficarão. /. 

E o vento beija os caracóis novatos. Um contrato. De bem e graça. Em cascata, Ana de Beatriz. Ela segue o fio do mar. Salgado. Sem enfado. Mar Português: /Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal! /Por te cruzarmos, /quantas mães choraram, /Quantos filhos em vão rezaram! /. Fernando espera. Em suspenso, aguarda. Tenso e vivo. Vivo e tenso. Na obra do feito. No feitio da obra. Leitura. Recitação. Ana conhece o texto. Contexto. Afinal: /Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor. /Deus ao mar o perigo e o abismo deu, /Mas nele é que espelhou o céu. / Pessoa alcança os olhos. Abrolhos. Não mentiu. À dor dos navegantes, atuantes, cede o mar. Ao meio, titubeio. Principal: /Quantas noivas ficaram por casar/Para que fosses nosso, ó mar! /Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena.

E de perto, bem mais perto, Diamantina faz cantar. Sete sílabas. Sete chaves. Som de terço. Trovador. É a trova. Serpentina.   Horizonte do talvez: /Quando à noite a linda lua/torna as pedras cor de prata/Diamantina sai à rua /transformada em serenata./.   No enleio de Carvalho, Ana canta ao falar:/Seresteiros indormidos/dedilhando violões/levam música aos ouvidos/e saudade aos corações. /

–_ Ana! Pode parar agora, minha filha!

–_ Mãe!? Palíndromos não param.

–_ Você fala do que, agora, menina?

–_ Tá…eu explico! Eu sou um palíndromo!

–_ Hã?

–_ Sabe por quê? Eu sou … hummm…simética?

–_ Simé…filha, nunca ouvi essa palavra.

–_ Eu ouvi. É assim… sou redondinha! Simética!

–_ Está ficando estranha essa explicação.

–_ Mãe, eu posso ser e não ser, tendeu?

–_ Isso me lembra uma peça de teatro e…

–_ Adooooro teatro! Mas não, ó… A-N-A! Viu?

–_ Não viu…

–_ Não vi! Não vi! Mãe…ai! 

–_ Filha, estou ficando tensa. A sua professora explicou isso daí?

–_ Não, né? A professora dá aulas! Ora!

–_ …

–_ Mãe, olha! Eu já sei escrever A-N-A. certo?

–_ Certo! E a sua letra está maravilhosa!

–_ Entendi! Me motivando, né? Tá! O assunto é outro. Lê aqui.

–_ A-N-A! 

–_ Agora lê dos fundos para a frente.

–_ Filha!!! Estou confusa! Muito confusa!

–_ Eu sou um palíndromo! Já, já você entende!

–_ Eu sei o que é um palíndromo! Mas você disse que você é… lembra?

–_ Sou!

–_ Não, Ana! O seu nome é que é!

–_ Tudo igual!

A menina verso e prosa, desliza em verbal alegria.   Não há quem lhe tire da boca e da alma os estudos do pai.

–_ Estudar poesia dá dinheiro, pai?

–_ Ah! Bom…olha só…

–_ Já entendi! 

–_ Mas é que…

–_ Nem explica, pai! Você gaguejou! Me passa outro Drummond?

–_ Tá! Você gosta desse?

Essa era a prosa que Ana tecia. Recitar era o seu trabalho!

–_ Não é um trabalho! Criança não deve trabalhar! Ô, mãe!?

–_ Calma, filha! Daqui a pouco ela acerta!

Ana recitava poesias como se tivesse nascido delas. Nascera. De um poema em duo. Leve como as nuvens que teimava encostar. Encostava. O seu amor pela poética atravessava-a por inteiro. Ninava ouvindo o pai declamar. Dos clássicos aos contemporâneos. Acordava pedindo mais. A mãe, professora de escola pública, convivia com a literatura por fruição. Mas jamais imaginara que a filha se tomaria de tanto amor pelos versos e que…

–_ Que o quê, hem? Muito cuidado agora. Meu pai ganha dinheiro, tá? Ele…

–_ Filha! Olha os modos! Você está interrompendo!

–_ Mãeeee! Você não explicou as coisas para ela?

–_ Expliquei, filha! Expliquei. Só que, quando a gente conta alguma coisa sobre outra pessoa…

–_ Inventa?

–_ Não, Ana! Conta!

–_ Dá no mesmo! 

–_ Não é a mesma coisa, filha!

–_ Para mim é…

–_ Certo! Você ainda vai entender!

–_ Tá, mãe! Agora deixa ela continuar essa…inventação!

Ana amava poesias. Ao ser apresentada aos primeiros poemas, ainda sem as letras…

–_ Ah! Não! Né, mãe! Ela vai dizer que eu ainda não sei ler!

–_ Mas você está aprendendo, Ana! Não é verdade?

–_ Tá, né! Mas não precisa espalhar!

O pai lhe apresentara Drummond. Estudava José, com a intensidade que o texto exige, quando Ana o interrompeu:

–_ Pai…para de dizer esses versinhos, para!

–_ Mas… o que foi, filha? O pai está trabalhando …

–_ Esses versinhos me deixam triste!

A menina percebera, do alto de seus sete anos, que o texto transcendia ao escrito. A solidão em um dos maiores e mais conhecidos poemas do grande poeta mineiro descera sem vírgulas. O pai mudou de sala. Manteve a poesia.


Imagem de destaque: Pxhere

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