A mancha da sorte – insubstância da morte

         Ivane Laurete Perotti

Feito trincheira violada, fundia-se o caminho. Na forja, barracos e indiferença. Moradas da invisibilidade. Sob o uniforme escolar guardava os olhos baixos. Não ver o visto. Não ouvir o ouvido. A lama e as pedras conversavam diferenças. Alguns cascalhos fixavam-se por obra da pressão. A chuva descrevia-se em lama. O esgoto punia a terra. Ele se defendia da água suja. Dos barracos exalava a rotina. Barracos têm cheiros e vultos. Mistura das ausências recriadas no jogo da indignidade. Identificava os lugares da desistência. Os poucos resistentes não dormiam: vigiavam. Esquivava-se daqueles que jogavam com a berlinda da miséria. Desafio maior. Temor de sua mãe. Cova de seu pai. Infortúnio de seu irmão mais velho. Todos velhos demais para a vida que reinava ali.

Exercitava a invisibilidade até chegar à escola. O portão sem tinta esperava-o como um abrigo da sorte. Fuga da morte. Alçapão do destino. Oásis no tempo e na vida. Então, olhos subiam estrelas. Órbitas infladas como se recebessem ar por compressor. Era um menino de sorte. Muita sorte. A escola barrava a morte.

Floresciam luzes naquele farol. Odores únicos. Das salas abertas. Da cantina quente. Cheiros têm digital. Contam do tempo e do lugar. A escola odorizava o mundo. Aproximou-se da cantina para inalar as notas da canjica em cozimento. Era o dia da biblioteca – uma salinha apertada com alguns livros no chão, sobre as cadeiras, encostados às paredes.  Ele rumava sem pressa. Sem medo. Sorrindo por sobre ombros e braços. Mão em riste para o cumprimento dos parças. Adolescentes abrigados. Sedentos. Visibilizavam-se. Existiam. Manifestavam-se nos braços da escola. Nas línguas dos corredores livres. A escola era campo em lavradura. Terra de plantio. 

O início das aulas redividia os grupos. Refugiados da sociedade. Produtos da negação. Sobreviventes de famílias marcadas para morrer. Mortas. Parentes emprestados da vida e da resistência. Afastar-se do afogamento era um ideal. Gostara de ler o conto O burrinho pedrês, de Guimarães Rosa. Espelhava-se na figura do Sete-de-Ouros, especialmente sobre os maus pisos e o instinto apurado. Desejava salvar-se da condenação por nascimento.

Desde que a professora começara a trabalhar a leitura do mês, mesmo antes de lerem Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, tornara-se bordão entre eles a frase: Aos vencedores, as batatas. Quantas batatas fariam uma vitória? Estava curioso com a leitura em preparo. Era assim a cada quinzena. Antes de lerem a obra, participavam de oficinas. Elas ajudavam com a linguagem, o contexto, o tempo, a história do texto escolhido pela turma. Mergulhavam de cabeça. Cabeça preparada. Ficavam sabendo muito da obra antes de chegarem a ela.  Então, ler se tornava uma aventura sem freio. Aguardavam a distribuição dos livros como se fosse um prêmio. Liam com gosto e conhecimento prévio. Liam para se perder no encontrado. Liam para conhecer as fomes. As fomes liam com eles e elas. Fora da escola, os livros lhes permitiam construir outro tipo de barricada. As trincheiras caiavam-se de movimentos. Viajavam na vida. A miséria, nua, expunha-se em toda a sua construção.

Não poucas vezes, Kaio lia, à luz da lua, para a mãe. Catadora de recicláveis em uma cooperativa comunitária, lembrava-lhe o Homem de Lata, de O Mágico de Oz, de Frank Baum. Lera o livro tantas vezes, tantas vezes. Sua curta infância teve Doroty Gale morando em uma casinha maior do que a dele. A Mãe-Homem de Lata, era desengonçada. Nunca tivera sapatos invejáveis. Lutava. Diariamente. Tudo isso para mantê-lo a salvo e na escola. Ler para a mãe tinha um pouco de retribuição. Nem sempre ela acompanhava. Adormecia na primeira frase. Kaio lia. Como acreditando que o texto se lhe passasse ao espírito. Reconhecia-lhe a força materna. Mulher em missão na guerra. Sem posto. Sem farda. Sua arma e alimento: a esperança. A mãe acreditava que conhecimento tinha poder. Não conhecera escola. Por assinatura, a marca de seu polegar. Percorria os lixões. Quando encontrava livros e revistas, comemoravam. Ele nada pedia. Ela entregava tudo.

Um desejo retorcia as suas entranhas: ler Cervantes, Dom Quixote de La Mancha. Queria o livro. Precisava tocá-lo. Cheirá-lo. Sentir o peso. Não havia exemplar na biblioteca da escola. Mas o pouco que ouvira sobre a história pegara-lhe de cheio. Imaginava as palavras avançando por séculos e séculos. O escritor, vivo, saltando o tempo. As palavras chegando, gordas de espera. Confessou-se à professora. Recebeu a orientação de que, talvez, devesse aguardar por mais leituras antes dessa. Amadurecer com as obras do momento. A lista de livros escolhidos o deixaria preparado para avançar. Mas sim, a obra era fantástica. Deu-lhe a ideia de escrever algumas cartas para endereços específicos. Ela mesma as postaria no correio. Que ele expressasse seu desejo. Sua grande curiosidade.

Saiu da escola quase entregando a alegria. Esforçou-se em não ver/ouvir para chegar ao casebre e debruçar-se à escrita. Repetiu o poema que escolhera para recitar no Círculo de Leitura: Se – de Kipling: “… crer em ti quando estão todos duvidando…”, não! Ele não precisaria de desculpas. Escreveu como se disso dependesse a sua vida. E dependia. Sua vida dependia dos faróis acesos nas páginas da literatura. Ou ele a encontrava, ou ela o encontraria. Eram dependentes.

Passou-se pouco mais de um mês. Quem acredita na sorte respeita o azar. Mas Drummond o inspirava: “Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem na sombra/disse: vai…”. O Poema das Sete Faces fora escrito por um vencedor. “…vai”! Iria! Temia que a carta se perdesse. Não fosse lida. Sofria a ansiedade da ousadia. Até que, em uma sexta-feira de chuva e resíduos, foi chamado pela direção. Uma encomenda volumosa chegara em seu nome. A carta fora respondida. Muitos livros doados à biblioteca. Por sobre as caixas, uma, em papel diferenciado, foi-lhe entregue primeiro.

Continua na próxima edição


Imagem de destaque: StockSnap / Pixabay

 

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