A escola fora determinante para Joana nascida no Brasil. Aprendeu a ler: ganhara em pensamentos. Sentira-se maior. Quase limpa. Quase livre. Tão livre que os pais cogitaram retirá-la da escola. Por obra da insistência, permaneceu. A escola merecia créditos. Além de ensinar, reunia as famílias. Sem batatas. Mas com sorteio de alguns livros, materiais para higiene pessoal, bazar de roupas usadas, e conversas. Uma festa. Apesar das batatas ausentes.
Em um desses encontros, Joana ganhou livros. O que chamou de sorte foi um murro do inesperado. Faíscas da saudade ausente. Atualização do improvável. Profana epifania. Lacuna dos desejos. Olhos de fome cobertos de gozo. Chispas óticas de fora para dentro. De dentro para o mundo. Letras bailantes. Um prazer quase mortal. Por alguns segundos, esqueceu-se das batatas. Por alguns segundos. Pois, a cantineira do avental branco como as nuvens do céu e surrado como as mãos de uma camponesa, entregou-lhe um pacotezinho, em papel de feira.
_ Joana, são para você. Trouxe de casa.
O sangue bombeou serpentinas. Livros e batatas. A felicidade espocou salivas. Baba. Balança cheia. Vistas de alegria doce. Peito em brasas. Pés colados no cimento cru. Ba-ta-tas! Livros e …ba-ta-tas! Quando liberada pelo cimento manchado de insurgências, deixou a festa como beija-flor apaixonado. Fôlego na sola do coração. Gambitos emplumados. Bico de cegonha. Barriga de imaginação. Corpo de ventos. Fumaça da ressurreição. Nem França. Nem d’Arc. O agora tomara-se de eternidades. Comovido, o aterro tragou os eflúvios nauseabundos. Aspirou-os pela garganta em torniquete. Boca dos rejeitos. Gengiva da humanidade.
Joana correu a vida. No barraco, descobriu-se rica. Abriu os livros. Contou as batatas. Frescas. Inteiras. Eram quatro. Casca firme. Saudável. Em asas, fechou os livros sobre o peito tendo a blusa por suporte. Com um nozinho na barra esgaçada, partiu para o mundo. Batatas à mão, livros ao peito. Com a alma na ponta dos dedos, percorreu o terreno batido. Experimentou a terra. Cavou. Afofou um montinho de …
_ Joana! O que faz aí?
Caiu.
Sentada na realidade, demorou-se na explicação.
_ É… é a lógica das batatas. Finalmente, as ba-ta-tas…
Pais e irmãos trocaram olhares alienígenas. A escola cozinhara aquela cabeça.
_ Eu disse! Eu disse! Olha isso…é a melhor aluna lá e a pior por cá!
_ Por aqui, pai. _ em recuperação diante da cortina cerrada, Joana apertou os livros contra o peito e, instintivamente, escondeu as batatas.
_ Fazendo o quê, Dona Joana? – a voz da mãe negou ajudas. Quando mirava o Dona, baixava a tempestade.
Atrás do suspiro, Joana nascida no aterro, pensou na fogueira da outra. Se se explicasse, salvaria a eternidade.
_ Olha…eu… eu estou tentando investir em…em literatura.
_ Mexendo na terra? Esqueceu que o seu pai quer um banheiro aí? Aí mesmo?
_ É… é que…foi o melhor lugar que encontrei para a… a …
Possivelmente, a intensidade que foi crescendo nos olhos de Joana afetou a família. Convidaram-na para entregar as explicações sobre aquela bagunça. E mais, por que ali? O pai queria plantar os vasos sanitários… não! Plantar, não! Fazer… ah! Ela bem sabia. Que se explicasse. Ela explicou. Sua fala ganhou braços, pernas e uma boca solta. Tudo começara quando descobriu o mundo além do aterro. Eram dois, certo? O povo do aterro e o povo da cidade. Não havia meio povo do aterro e meio povo da cidade. Havia? Não havia! Ou era do aterro. Ou era da cidade. Gostava de batatas. Forravam a barriga. Não se faz necessário dizer que Joana precisou manter a boca expelindo palavras para manter fechada a boca dos pais. Olhos de pergaminho. Então, qual o maior problema do aterro? O maior entre os grandes? As fomes! As fomes de comida. De história. As fomes de cheiro bom. As fomes de água e esgoto que não se vê e nem se brinca nele. As fomes de casa. As fomes… Concordavam. E quanto à esgaravatação? Bem, fazia parte do investimento. Procurara terra boa para as batatas. Plantar? Mas por que não falara logo? Tá! Isso era interessante. E… depois, os livros… Não! Nada disso! Batatas, sim. Livros, improvável. Analfabetos de nascimento, analfabetos de morrimento. Talvez lhe ensinassem a plantar. Batatas. Não livros!
Joana do aterro amava batatas. Amava livros. Vivia a lógica das primeiras entre as dores da fome. Reconhecera outras fomes nas dobras dos livros. Quem sabe, ainda convenceria os pais sobre a relação entre livros e batatas. Entre livros e mundos. Assariam a primeira colheita. Leria um livro para eles. Apertou os que mantinha sob a blusa. Recontou os tubérculos. Importante empreender histórias. Hummm… as batatas dariam uma boa refeição! Escolhia as vozes da narrativa. Quatro batatas por canteiros de vida. Páginas telúricas a escalarem a mesa sem arrancar-lhe as pernas tortas. Histórias para acordar. Para lembrar o esquecido. E falar do não dito. E dizer do que se fazia esquecer. Armava-se a literatura para vencer a guerra. Pois que a ingenuidade não põe prato à mesa da sobrevivência. Literatura para quê? Para plantar batatas e revolver os mundos.
Imagem de Destaque: Nietjuh /Pixabay