A estética do século XVII: o exótico indígena na sala de aula

Arnaldo Martin Szlachta Junior¹ 

Ao caminhar pelas ruas do Recife é possível verificar uma herança holandesa muito forte, ou melhor, uma identidade que fora construída intencionalmente nesse sentido. Não é incomum escutar pessoas dizendo pela cidade que a saída dos holandeses foi um erro, que Nassau era um humanista muito à frente de seu tempo. Logo que cheguei à cidade um homem, que se apresentava como guia, me conduziu pelas ruas do bairro do Recife. Segundo ele, eu estava vendo as construções holandesas que fizeram do Recife a primeira grande cidade das Américas. Como Historiador e Professor de História o questionei se aquelas construções não seriam mais portuguesas e brasileiras pois o traçado arquitetônico lembrava a segunda metade do século XIX – Após um silêncio sem graça ele só comentou: “Não, os portugueses só queriam explorar”.

De fato, a invasão holandesa ao Nordeste do Brasil pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC), entre 1630 a 1654, instalou-se uma comitiva, organizada pelo administrador João Maurício de Nassau, na região do Recife que trouxe, em 1637, diversos profissionais ao Brasil. É preciso lembrar que Nassau, que é narrado como um grande humanista a frente de seu tempo representava o interesse da Companhia das Índias Ocidentais, manteve a escravidão e lucrava com açúcar e com o tráfico negreiro. Sua predileção pelas artes e ciências está muito mais associada à sua origem nobre do que qualquer iniciativa de Vanguarda.

Dentre esses profissionais que chegaram junto com a comitiva de Nassau, em 1637, destacamos os pintores que tinham como missão retratar as características do espaço que haviam tomado. Entre os pintores, temos Albert Eckhout, que esteve sete anos no Brasil, produzindo uma grande quantidade de obras e cujas pinturas são diversas: tipos étnicos presentes na região; representantes da fauna e da flora e muitas naturezas mortas etc.  Com uma obra vastíssima, tanto Eckhout, quanto Post são tidos como os primeiros pintores a atuar nas Américas, como também os primeiros a registrar suas paisagens e personagens. Os holandeses tinham interesse muito mais em representação suas conquistas do que destacar as riquezas “brasileiras”.  Nesse texto, especificamente vamos destacar a impressão da indígena de Eckhout.

A maneira de enxergarmos os índios não foi sempre a mesma. Antes da invasão holandesa, o que se sabia dos nativos americanos era por meio de relatos de jesuítas, náufragos ou por gravuristas que eram contratados para apresentar a situação e os acontecimentos nas regiões coloniais. Nesse primeiro momento, havia uma visão pessimista sobre os nativos, na maioria das vezes apresentados como terríveis seres canibais que eram uma grande ameaça aos projetos colonizadores. 

Com a presença jesuítica, há uma representação ligada a valores do renascimento, e esse nativo já possui um caráter humanizado, levando em conta que ele já teria passado por valores cristãos.  Já Eckhout representa uma considerável transformação e ruptura conceitual desse pensamento, pois retratava os índios Tupis e Tapuias como uma espécie de aliados dos colonizados, não com uma igualdade, mas com uma proximidade humana muito forte, uma vez que os índios, além de pacíficos, se apresentavam vestidos, eram trabalhadores e tinham família, ou seja, não era interessante exterminá-los, e sim civilizá-los, pois seriam úteis ao trabalho. Os índios “bravos”, isto é, sem a civilidade, andavam nus, carregando partes humanas esquartejadas que serviriam de alimentação, e ainda entrariam em guerra com os colonizadores. 

Desse ponto de vista, o qual faz o registro de um ambiente e dos personagens que o compõem, percebe-se muito do contexto em que o autor está situado, oferecendo, no que diz respeito à história da natureza, uma vasta gama de informações sobre não só como esta era percebida, mas também sobre como era a interação com ela, o europeu que está representando esse espaço: seus olhares, além dos interesses políticos no domínio holandês, também acabavam buscando essa excentricidade, o culto ao exótico; e esse interesse do europeu além-mar revela o tão comum culto ao exótico, possivelmente que tem origem ou ganha forma com a atuação dos holandeses no Brasil Holandês. Desse modo, nós como professores em sala de aula, temos que ter um olhar crítico para as imagens, questionar suas intencionalidades e entender que assim como os textos, são documentos dotados de historicidades, e usá-las somente como ilustrações, acaba por perpetuar paradigmas recheados de generalizações, simplificações e preconceitos.

Dessa forma, entendemos que as reflexões sobre as imagens históricas são de grande importância para entendermos nosso processo de construção de nação, e nesse Bicentenário da independência cabe refletir sobre os caminhos que nos trouxeram até esse Brasil de hoje. O olhar histórico e historiográfico sobre as pinturas é uma proposta sedutora para qualquer professor, mas é preciso cautela ao analisar o período. Não que as fontes imagéticas — nesse caso à pintura — possuam um método todo próprio e distinto de difícil alcance do professor, mas, ao refletirmos sobre seus usos nas salas de aulas, podemos colaborar, e muito, com os debates sobre hábitos, culturas, costumes e discursos que muitas vezes não se completam nos documentos escritos tão cansados de grande parte dos livros didáticos.

 

1 – Doutor em História. Professor da universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Laboratório de Aprendizagem e Ensino de História (LAEH – UFPE). 

 

Para saber mais:

Em 1637, chegaram ao Brasil, na comitiva de Nassau, também o holandês Willem Piso, que era médico e naturalista; o poeta Franciscus Plante; também o médico Willem van Milaenem, para se juntarem ao pintor amador e cartógrafo Zacharias Wagener, que já servia à Companhia da Índias Ocidentais, em Recife, desde 1634, como soldado. George Marcgraf, naturalista que também faria parte da comitiva, chegou a Recife somente no ano seguinte, assim como alguns militares que já serviam à companhia em Pernambuco e que contribuíram para o projeto de Nassau (OLIVEIRA, 2007, p. 3).


Imagem de destaque:  Albert Eckhout. Retrato de mulher Tupinambá, 1641. Óleo sobre tela. 274 cm x 163 cm. Nationalmuseet (Copenhague, Dinamarca).

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