Eu, professora universitária, compro livros pela internet e espero ansiosamente pelo dia da entrega. Eu simplesmente ignoro o fato de que, para que eu receba meu livro, pessoas são exploradas cotidianamente por empresas de entrega. Estamos todos inseridos na perversa e global rede da uberização que consome vidas, destrói famílias e sonhos.
Como sobreviver em tempos de uberização?
“Você não estava aqui” (Sorry, We missed you, 2019) é seco e duro e não poderia ser diferente, pois se propõe representar um triste fenômeno do tempo presente: o processo de uberização da vida.
O filme retrata a luta pela sobrevivência em uma família constituída por pessoas brancas na Inglaterra -mas poderia ser no Brasil de 2020, país em que a taxa de informalidade é de 41%, considerada a mais elevada das últimas décadas. O drama é uma crítica ao processo desumano de exploração do trabalho em tempos de “flexibilização”.
Não há direitos.
Não há tempo para lazer.
Não há tempo para viver.
Sobrevive-se sob a falsa ideia de liberdade. Ser uberizado é ser consumido pela ideia de ser “dono do próprio negócio”. É um tipo de servidão, com lucros apenas para poucos…
Ken Loach é um cineasta consciente. Ele acredita que “a esperança está na raiva”. E por acreditar que o cinema cumpre um papel importante na tomada de consciência das pessoas, o diretor inglês não consegue se aposentar da sétima arte. No auge de 83 anos bem vividos, Ken Loach utiliza o cinema como ferramenta para criticar o atual momento do capitalismo.
“Você não estava aqui” é, sim, um filme autoral, e parte das inquietações e revoltas do próprio cineasta. Por isso, é possível notar que o filme mais recente é um desdobramento do anterior. Em “Eu, Daniel Blake” (2016) o foco está na perda de direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores, dentre os quais, a aposentadoria.
Acredito que o cinema pode ser um aliado importante no processo de luta contra injustiças e opressões num mundo que sobrevive e se retroalimenta das desigualdades. “Você não estava aqui” também permite que o telespectador se veja como parte constituinte do processo de exploração das pessoas em situação de uberização.
Afinal, também somos consumidoras de muitos destes serviços.
São serviços baratos.
Rápidos.
Eficientes.
Desumanos.
O preço afinal é alto. São vidas humanas sendo consumidas por uma relação de trabalho abusiva e sem direito algum.
Por isso, defendo que é preciso uma tomada de consciência de toda a população que também consome tais serviços. É preciso ter coragem e uma indignação coletiva. É preciso compreender que no atual momento do capitalismo, apenas 57 mil pessoas controlam a riqueza de todo o planeta. E que são essas 57 mil pessoas as principais beneficiárias das desigualdades e injustiças sociais. Se você não integra esta pequena parcela da população mundial, o próximo “uberizado” pode ser você. Seremos todos nós, trabalhadoras e trabalhadores do mundo.
Ou nos unimos, ou seremos extintos. Estamos todos conectados pela iminente precarização da vida.
Imagem de destaque: Divulgação