A escola é uma chance!

Ione Ribeiro Valle*

O documentário A Caminho da Escola (Sur le Chemin de l’École), 2013, dirigido por Pascal Plisson, vencedor do prêmio César du cinema francês no ano seguinte, tem como foco os trajetos diários ou semanais feitos por crianças de quatro partes do mundo para chegar à escola. Todas compartilham o mesmo sonho: aprender para melhorar suas condições de vida.

Os protagonistas enfrentam com grande entusiasmo perigos terríveis e arriscam suas vidas porque reconhecem que a escola é uma chance. Jackson tem 11 anos e vive em Laikipia, Quênia. Ele e sua irmã Salomé saem de casa às 5h30 todas as manhãs e percorrem a pé, durante duas horas, 15 quilômetros para chegar à escola. Juntos atravessam áreas desérticas, matagais, precisam desviar de tropas de elefantes e estar atentos ao risco de se perder na imensidão. Zahira tem 12 anos e habita numa região montanhosa no Alto Atlas, Marrocos. Ela e suas colegas, Noura e Zineb, percorrem 22 quilômetros a pé, durante quatro horas, todas as segundas-feiras para chegar ao internato, onde permanecem ao longo da semana. As meninas andam por caminhos pedregosos e extenuantes e enfrentam grandes perigos. Carlito tem 11 anos e mora na Patagônia, Argentina. Ele e sua irmã Mica percorrem todas as manhãs, a cavalo, durante 1h30, 18 quilômetros para chegar à escola, independentemente das intempéries climáticas, atravessando extensas coxilhas cortadas por encostas íngremes, pedregosas e escorregadias. Samuel tem 13 anos e vive no Golfo de Bengala, Índia. Ele percorre, em companhia de seus irmãos Emmanuel e Gabriel, 4 quilômetros todas as manhãs. Como Samuel é deficiente físico, para chegar à escola seus irmãos empurram por cerca de 1h30 sua improvisada cadeira de rodas enfrentando caminhos arenosos e encharcados.

Ao seguir de perto esses caminhos insólitos, Pascal Plisson mostra que as crianças vivem verdadeiras odisseias para ir à escola e, ao mesmo tempo, nos leva a apreciar paisagens magníficas que contrastam com o medo e o sofrimento, a descobrir relações humanas e familiares sublimes, a admirar a determinação extraordinária dos que buscam, através da escola, realizar seus sonhos.

Mas a odisseia vivida por essas crianças não está muito distante da que enfrentam milhões de brasileiros para chegar à escola. Os retratos, cuidadosamente apresentados, me levaram a rememorar experiências da minha primeira inserção no magistério.

  1. Professora normalista, formada no Centro Educacional Vidal Ramos Júnior de Lages, ingressei numa Escola Isolada pertencente à rede estadual de ensino de Santa Catarina. Ao chegar à escola fui surpreendida com as condições precárias do espaço destinado à sala de aula: o salão de festas de uma igreja, ela também isolada e perdida na amplidão da chapada.

Dez meninos (não havia meninas matriculadas) com idade entre 7 e 14 anos, residentes em sítios ou fazendas, compunham a classe multisseriada que atendia simultaneamente da 1ª à 4ª série do então Ensino de 1º Grau. Meus alunos percorriam a pé até 10 quilômetros para chegar à escola; nenhum deles se deslocava menos de 2 quilômetros.

Para o pequeno Tonico (Antônio), cuja história de vida era muito próxima da de seus colegas, esse era o primeiro dia de aula. Ele tinha 7 anos, era curioso, perspicaz e queria aprender para ajudar seu pai nas lidas da fazenda em que habitava. Mas o maior sonho daquele menino, que cruzava a pé coxilhas, lajeados e matagais por cerca de 10 quilômetros, era conseguir trabalho na extração da araucária, atividade que se tornara atrativa na região.

Segundo os colegas, Tonico era um menino medroso que se sobressaltava com qualquer ruído; um menino estranho pois, assim como chorava por nada, ria por coisa nenhuma. Mas, para a professora, ele era corajoso, pois enfrentava sozinho o silêncio das matas, interrompido apenas por sons de animais selvagens que povoam os pampas catarinenses. Aquele menino franzino, com seu chinelo de borracha ou descalço e mal agasalhado, era perseverante, não tinha medo de “amassar barro”, de “quebrar gelo”, como se dizia à época, ainda que estivesse tomado pela fome e pelo frio.

Se defrontar com a dura realidade daquelas crianças não poderia deixar indiferente a ‘menina de rabo de cavalo e ideias ao vento’ que queria ser professora. Como lembra Pierre Bourdieu, há formas mais ou menos sutis de racismo social que não podem deixar de despertar alguma lucidez e que levam a perceber coisas que outros podem não ver ou sentir.

Certamente devemos continuar analisando,  criticando e reinventando as políticas educacionais e a escola, como se tornou evidente no contexto da pandemia da Covid-19. Mas não podemos esquecer que o direito à educação é uma conquista, assim como a merenda escolar, o transporte escolar e até mesmo o uniforme escolar. Não podemos esquecer que, para a maioria das nossas crianças, “a escola é uma chance”, provavelmente a única chance de conquistar uma vida melhor, um pouco mais justa, num mundo em que campeiam desigualdades e injustiças.

Assista A Caminho da Escola:

https://www.youtube.com/watch?v=s4wRBxzBCeI.

*Pedagoga, mestre em Ciências Sociais e doutora em Ciências da Educação. Professora associada do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora o Grupo de Pesquisa Ensino e Formação de Educadores em Santa Catarina e o Laboratório de Pesquisas Sociológicas Pierre Bourdieu (Burdiê).


Imagem de destaque: Distribuição Walt Disney Studios Motion Pictures International

 

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