A doença da borboleta julieta

Elenice de Brito Teixeira Silva


na imagem Artur (5 anos), que reside na cidade de Guanambi na Bahia, usa máscara e segura um seringa pressionada sobre uma borboleta feita por ele com papeis coloridos em vermelho e dourado. A borboleta, que ele nomeou como Julieta, está sobre a cama.

Um pedacinho da escola chega em nossa casa toda vez que chega um novo vídeo feito pelas professoras. A gente assiste junto e eu sempre fico contabilizando o tempo que a professora gastou para fazê-lo. Sou dada a essas minúcias indiciais que todo mundo que trabalha com crianças acaba desenvolvendo (ou pelo menos, deveria). A Pandemia, além de mostrar que os/as profissionais da Educação Infantil não são substituíveis, tem colocado novos desafios para esses inventores da Pedagogia com bebês e crianças. Lá está o cenário, os artefatos culturais produzidos e uma narrativa nova, diferente da que, certamente, construiriam na presença de crianças que as interpelam. Sim – interpelar que é diferente de interromper. Quem conta histórias para crianças deve saber que se conta histórias com elas, sob o olhar que convoca, o sorriso que responde, a pergunta que duvida e o pedido que quer mais.

Pois bem. Imagino que após média de um dia de planejamento, ensaio, gravação, edição, avaliação da coordenação e o clique do publique-se, lá está um pacotinho de cuidado nas nossas casas. Um modo de estar presente, de cuidar de longe, de dedicar afeto e atenção, potencializar interações familiares e a constituição da memória e do imaginário, de manter vínculos que começaram a ser construídos antes da interrupção das aulas, que penso ser o único objetivo da relação das escolas e professoras com os bebês e crianças pequenas nesse momento. Afinal, enviar tarefas centradas em um suposto “conteúdo” em papel xerocado soa até desumano e descomprometido com a função de compartilhamento do cuidado e educação entre famílias e escolas.

No pacotinho de cuidado que recebemos hoje, a história do Coelhinho que não era de Páscoa. Uma viagem a um universo fantástico em que coelhos entram na cadeia produtiva do chocolate e no mercado dos ovos de páscoa. Vivinho era o coelho que não queria saber de nada disso – C.O.M.U.N.I.S.T.A. Junto com ele, a borboleta Julieta, o beija-flor Florindo e a Abelha Belinha formavam a resistência. Ruth Rocha não disse nada disso, mas essa é outra conversa. Em toda história de transgressão há sempre um exército para lembrar que não estamos sós. Pronto! Encontramos ideias disparadoras para falar de Páscoa, de chocolate, para pesquisar de onde vem.

As histórias infantis são fontes simbólicas que ampliam o repertório das crianças. Li outro dia que os livros de Literatura Infantil são as primeiras galerias de arte que as crianças conhecem e eu gosto dessa ideia. Por isso defendo a Literatura de colo, de berço, Literatura para bebês. Só que as crianças visitam a galeria de arte como inventores, como artistas interessados em conhecer “novas técnicas” para criar sua própria arte. Elas fazem isso também com a natureza, a casa, o quintal, com todos os lugares e materialidades. Não são apenas apreciadores!

As histórias acordam a casa das meninas e dos meninos! Elas disparam as pesquisas do cotidiano. Uma cabana abandonada há mais de um ano aparece montada no quarto. Dentro dela vários bichinhos de pelúcia e animais. Sou interpelada com um pedido e um protesto:

O protesto: “mamãe, eu não tenho nenhum coelho”.

O pedido: “eu preciso de chocolate para fazer ovo de páscoa”.

Temos problemas a resolver. Confeccionar nossos coelhos era o primeiro– escolher materiais, pesquisar formas de fazer, decidir pela toalha de rosto, coloca olhinho aqui, cola bigodinho lá. Pronto o Senhor Coelho. “Mas, e a família dele?” Bem lembrado! Se tem uma coisa que crianças aprendem na escola é essa relação com as famílias e a se situar no mundo em relação a cada um deles. Mais umas horas de produção cultural e a família está pronta! Com nomes, crachás para identificá-los e tudo. 

E agora? Como produzir ovos de Páscoa? Precisamos primeiro descobrir o que utilizamos para fazer o ovo, mais pesquisa, escrita da receita, separação e contagem dos ingredientes, leitura e conferência do que falta fazer e… conclusão: “vamos ter que utilizar o chocolate que eu uso para tomar com leite”.

A rotina segue do cansaço e das necessidades de alimentar, tomar banho e dormir. A gente vai observando que é falsa a ideia de que as crianças brincam o tempo todo; ou que elas só brincam; ou a pior das ideias: a de que é natural que elas brinquem – é coisa de criança. Brincar é modo de conhecer o mundo, de fazê-lo nosso ou das crianças se apropriarem dos acontecimentos, das questões sociais e culturais, de construir saberes e intersubjetividade.

A criança dorme, a cabana dorme, os coelhos e a fábrica de chocolate dormem. No outro dia começa tudo de novo, não mais como ontem. Do nosso ontem para o nosso hoje aconteceram conversas, noticiários, a mobilidades dos espaços e deslocamentos de objetos. Tudo a disparar novas narrativas. Hoje a borboleta Julieta acordou com febre. Estava ela lá jogada na cama, embrulhada. Perto dela, atento e preocupado estava o médico, usando máscara de estrelinhas coloridas e com uma seringa de injeção pressionada sobre o braço: “não se preocupe. Você pegou coronavírus, mas eu vou cuidar de você. O super cientista vai criar uma vacina e matar todos os vírus nojentos”.

Uma história, os personagens, os contextos histórico-culturais, a ação-imaginação da criança a reelaborar tudo, a criar uma linguagem para comunicar impressões, sentimentos, opiniões. Aqueles bichos animados do quarto estabelecem, no campo imaginário, a amizade e o grupo de que já não se desfruta desde março (de 2020). Com eles é possível conviver apesar do coronavírus e conviver mais horas por dia nesse cenário de Pandemia. O desafio é que os brinquedos não substituem pessoas. As crianças os utilizam para o outro ou, caso contrário, brincar não teria sentido. E por mais interessante e necessário que sejam, chega aquele momento que elas reivindicam sair, visitar a tia. Chega a hora em que a gente precisa explicar tudo de novo sobre a importância de ficar em casa nesse momento.

E então o passar do tempo cura tudo, como dizia minha avó. A borboleta Julieta acordou após mais de uma semana de quarentena, esvoaçante pela casa. O sobrevoou pela sala, entre as flores do vaso do centro, era de alegria, de libertação. 

Ela está curada! Já sarou do coronavírus! Hoje já podemos sair, ir para a escola, ir na casa da tia Lene e levar para ela um bolo de chocolate.

Nota: O texto foi escrito em abril de 2020 como parte do Diário da Pandemia que escrevo para que meu filho, com 5 anos, conheça a rotina que criamos e as reinvenções que fizemos nesse tempo excepcional. Quase um ano depois, com a proximidade da Páscoa e de todo o universo simbólico que a envolve em nossas culturas, cá estamos a pensar outra vez na escola flutuante que entra todos os dias em nossa casa e na doença da borboleta Julieta cada dia avançando em nosso país. De lá para cá, os/as super cientistas criaram a vacina imaginada pelo menino, mas ela chega muito lentamente ao povo de nosso país. A borboleta ainda não pode sair voando livremente para a escola, nem mesmo para comprar chocolates na Páscoa.


Imagem de destaque: Elenice de Brito.

 

 

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