A anulação dos corpos na modernidade

Tiago Tristão Artero

A diferenciação dos que se nomeiam seres humanos em relação ao todo condiz com sua falsa pretensão de superioridade diariamente manifestada nas regras impostas pelos grupos  hegemônicos.

Apesar das ruas virarem rios, dos rios virarem ruas, da extinção de outras inúmeras formas de vida (e aqui caio no erro de reproduzir o raciocínio classificatório que pretende, autoritariamente, dizer o que é vida e o que não é), dos novos vírus que saltam das florestas destruídas e surgem das geleiras derretidas, do combate humano diário que destrói toda e qualquer cultura que se ligue de maneira orgânica à natureza, o modo de vida moderno (nesse combo “cultural” colonizante) insiste em criar mentiras diárias de que basta organizar as coisas, confiar na política, seguir as “regras” e investir em ciência que tudo se resolverá.

A reflexão sobre a anulação dos corpos não deixa de ser antropocêntrica (pois falo de corpos humanos), mas suas causas e consequências dizem muito sobre o tipo de mundo que estamos (nós, humanos) forjando. Enquanto somos convencidos de que a vida é uma corrida em direção a um sucesso (que é destruidor da vida) refém das próprias regras do sistema, todo o resto dá sinais de que a raça humana se comporta como um vírus a ser combatido por um organismo maior, o qual não conhecemos suas dimensões (nem em tamanho, nem em complexidade).

Colocamo-nos como administradores das cidades, das leis, do que chamamos de “recursos naturais”. Criamos um mundo artificial que não se sustenta na prática (nem a curto, muito menos a longo prazo) e nele estabelecemos o que seria uma vida saudável para o planeta e para nossos  corpos.

Esquecemos da mão no chão, do pé na terra, da necessária diversidade de fungos e bactérias no solo saudável (diferente do que vem a galope com as sementes transgênicas e com o aniquilamento de biomas) que nos dá a chance de termos corpos equilibrados. Estes são dependentes das sementes tradicionais e solos nutritivos.

Numa comparação, grosso modo, podemos dizer que nos alimentamos praticamente de antibióticos, ou seja, de alimentos (mesmo que aparentemente naturais) que nos dão calorias e não contribuem de maneira efetiva para nossa homeostase, gerando câncer, depressão e todo tipo de desequilíbrio interno.

Somado a isso, a culpa é valorizada no senso comum, alimentada pelo marketing. Culpa pelo enfraquecimento dos ossos e cartilagens, pelo aumento da pressão sanguínea e da massa adiposa. 

A modernidade nos apresenta o corpo que só dança se for pra emagrecer, só treina se for pra ganhar, só se move se for pra enriquecer. Claro que a indústria da beleza cumpre seu papel de dizer que há uma medida certa no diâmetro do corpo e que há uma harmonia cuidadosamente definida pelo racismo e pela eugenia. Aliás, a palavra harmonização está em alta.

Poderia me enredar aqui em reflexões a respeito das indústrias: farmacêutica, do medo (chamada se segurança), cultural, educacional e tantas outras que estão em uma forma (como se fosse uma forma de bolo) alinhada a forma destrutiva que nos colocamos neste mundo. As hastes que não estão no formato hipoteticamente desta forma de bolo são, sistematicamente, atacadas e cortadas (e, até mesmo, convencidas) para que se adequem àquilo que chamam mentirosamente de uma força irresistível de “evolução natural” do mundo.

Esta suposta “evolução social” se compromete visceralmente a julgar os que não  trabalham nos moldes que o sistema impõe (considerando o trabalho como a interação com o meio para prover a sobrevivência), os que não seguem as religiões alinhadas à meritocracia e/ou hegemônicas, os que se organizam de uma forma distinta àquela que está posta nos meios de comunicação como a mais correta.

Com isso, perece o corpo humano (incluído na vida moderna, única e exclusivamente, como possibilidade de consumo e de contribuinte para o acúmulo do que chamam de riqueza), agoniza a natureza (que, por mais que somos impelidos a crer que não somos parte dela, mas, também, somos “ela”) e os meios para a continuidade da vida humana tornam-se cada vez mais escassos.

Fomos impelidos (e somos), historicamente, a acreditar em um trabalho que adoece o corpo e a alma (que não estão separados, portanto, corpo/alma), que oprime e, como consequência (e, também, por condicionamento), anula-se e é anulado sempre que “ousa” manifestar sua potência na liberdade e na harmonia com o todo.

Finalizo esta reflexão deixando a necessária provocação de que não importa o sistema político e social que vivemos ou venhamos a viver. O antropocentrismo e o patriarcado (que se alimentam mutuamente) continuarão gerando morte e destruição. Dentre os destruídos e mortos, ironicamente, não estão só as mulheres e as vidas não humanas, mas, também, os homens e os(as) humanos(as).

Ainda há esperança naqueles que ousam manter os pés na terra fértil e movimentar-se ao som de instrumentos ainda não colonizados e no ritmo das inúmeras formas de vida.


Imagem de destaque: gritty-but-pretty / Flickr

 

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