Queria ser gente 

Ivane Laurete Perotti

Calibrou as palavras listadas como ensaio:

_ Eu/quero/ser/ gente.

Cheiros de lar sob as nuvens da rua. Ácidos. Sujeira encruada. Camadas do invisível endureciam-no em pele e pelos. Desmascarada nudez. 

_ Eu/quero/ser/gente!

Armou o gatilho. Semântico. Intencional. Pausas desfiadas em vazios de trincheira. Repetiu  inconsistências. Palavras  amarradas com  teias do destino esquecido, sem pontos de apoio, sem vírgulas de compaixão: cadenciavam leito. Jazia respirando.  Estava na mira. Frente a frente.

Vi “O Grito”. Munch ausente. Tintas doloridas escreviam as fealdades do mundo. Distorcidas linhas de um nascimento invisível. Solitário. Bordoadas da realidade retumbavam sujidades. O amorfo sobre a ponte de lugar nenhum traduzia-se em apagamentos. Ancoradouro do real.  Pincéis da loucura salteando  o movimento contínuo das mãos. Manoplas em fervura das memórias ausentes. Garras que surrupiavam da vida o que de vida lhes tiravam. Indevida condição. Tela de panos sujos. Pastiche  decomposto.

Fustigava  consciência e estética aquela miséria de tantas faltas. Matemática do nada. Rito inaudível a descer dos olhos. Um quadro do presente recortado em suas instâncias reais e insustentáveis. Na obra, uma indicação patente: leitavam em bacia de mármore os partidários das fomes, todos inscritos na história sem fim. Muitas fomes. Muitos poltrões. Muitos quadros com assinatura a sangue. Frio. Sem redenção.

Contrário aos ventos baixos que tocavam o dia ensolarado, ele expulsava a sentença em vapor ventricular. Arrítmico,  o pronome estilhaçava-se, expondo as minhas vergonhas. Morri de verbos. Nulos. Performáticos. Ilegítimos.

Vilipêndios urbanos amanheciam com a familiaridade dos hábitos: automáticos. Involuntários. Aquele parecia lugar marcado para o desafogo de uma voz. Uma. Teimosa e repetitiva voz da invisibilidade. Um “looping” do tempo em referência ao estar dos homens: inexistir.

_ Eu/quero/ser/gente!!

Ser. Querer. Gente… ele. Afirmava não ser o desejado. Era a miserabilidade humana atravessando os portões da autodefinição. Queria o que não era. Não era o que queria ser.  Transmutava todos os pedidos já oferecidos em afirmação doente. Latente. Desejava-se em outro “outro”: longe de si. 

“Na imundície do pátio…” Bandeira ergueu versos.  À frente do bicho. Ao lado do homem. Mas nem uma só curva dobrou a navalha social. Um século depois, o mesmo pátio imundo acolhe o homem. O bicho? O homem! O homem em devir de humanidade. O homem em estar de bicho. À frente da parva e doentia impotência que colou meus pés à calçada do dia.  Em deriva,  a vontade dizia de si, mostrava de mim. 

Despida de brios, corto na carne o texto pretendido. Não há o que dizer : morri de verbos.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens.

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