O balseiro, o poeta e a máquina de escrever – Parte

Ivane Laurete Perotti

Fina camada de versos crepita o rio Canoas. Dedos d’água estalam à margem pedregosa. Barrenta. Chorosa. Esbranquiçada pelas primeiras geadas do ano. O poeta em travessia suspira a manhã de sentimentos. Afaga o vento frio, caroneiro na balsa lenta. Lenta como raposa em ronda. Suave como os primeiros passos da vanera. Dois e dois dão cinco. Uma volta no pé, outras à mão.

_ Ô, João!? Tem rima no bolso?
_ No bolso, não! Rima mora no vento. Fica solta, perguntando o que se quer. Olha prá gente esperando pesca.
_ E rima tem zóio, João? – a gargalhada do balseiro foi carícia quente. O seu jeito de levar a prosa de um lado do rio para o outro era bem conhecida. Proseava consigo mesmo, com os outros, com as águas do rio, com a velha balsa. A espia de ferro na roldana conhecia os turnos. Descansava falas. Ouvia. Arremedava. Longamente, ouvia e memorizava. Grinki! Grinki! O rio se deixava atravessar pelo chão de latas e madeiras. Ferro e borracha. Um grande bote sem fundo. Plano. Rente à folha líquida e rugosa.

_ Poema novo? – o balseiro, grande amigo, insistia.
_ Poemas estão sempre novos. Mesmo quando criam barbas.
_ Você tá enluarado, João! Zóio, barba… quedê as rima?

Algibeira de poeta cose letras. A de Seu João, conhecido professor de sabedorias, não tinha fundos. Alfabetos iam e vinham pelo recorte interno do tecido. Homem simples, devotado à profissão, escrevia poemas para quem desejasse ler. Ou aprender. Desde cedo, muito cedo, fora engrenando palavras nas teclas da máquina. O papel recebia a marca das ideias. Dos sentimentos que viravam texto. Estrofe. Dos signos combinados bem longe do zodíaco. Formavam-se correntes seguidas de espaço. Tec. Tec. Teccc. Brrrp. Tect. Tec. Tec. Brrrp. Teclado e barra. Espaço e retorno. Nova linha. Espaço. Brrrp. Era o som de sua Royal. Antiga como a vontade daquele povo. Firme como as decisões do professor. Ali, não havia quem não lhe devesse lições jamais cobradas.

_ Professor?
_ Olá, Ana Lúcia!
_ Presente, professor!
_ Ah! Você não se esqueceu, não é?
_ De jeito algum! Ouvi falar de sua aposentadoria. É verdade?
_ É, pode-se dizer que sim!
_ Entendo! Deixar de lado a sala de aula…
_ Ela não deixa a gente. – concordaram.
_ E como vai a cidade, menina Ana?
_ Tudo igual, professor. A escola é grande. Muitos alunos. Problemas maiores também. Sabe como é!

A conversa durou o tempo do atracamento. Deslizando de lado, lenta, a balsa arrastou barro e água turva. Água do rio Canoas. Nascido entre a Serra da Anta Gorda e a Serra da Boa Vista, caminhava para o rio Uruguai. Denso. Cheio de surpresas. Ondulando camaradagens, ou abrindo-se em perigos. Profundos. Líquidos. Rápidos como o vento que lhe beijava o curso.

O poeta-professor, professor-poeta, sentiu o baque. Hora de pisar a terra úmida e seguir a trilha de casa. A sala multisseriada o aguardava. Vazia, no momento. Esperando o registro dos novos livros. Por mais que o tempo sinalizasse progressos e mudanças na educação, ali, margeada pelo Canoas, ficava a escola que ele atendia há muito tempo. Cinco turmas. Um ou dois alunos por ciclo. Era uma pequena comunidade. Muito pequena. Os que cresciam, atravessavam o rio.  Faziam o Fundamental II na cidade. E dificilmente retornavam. Poucos escolhiam cuidar da terra. Manter o gado de leite. Sobreviver do hortifruti distribuídos em feiras urbanas. Avançara o tempo. Fora dali. Uma das margens do Canoas guardava-se da velocidade. Apenas a balsa tocava-lhe as costas molhadas. Da nascente à foz, esquerda e direita acompanhavam o sentido da corrente.

A manhã fria tinha gosto de saudade. Cheirava à lenha recém-juntada do mais fundo da mata cerrada. Galhos que o vento açoitara.  Árvores secas tocadas pelo chicote do tempo. Dos raios, em tormentas carregadas de eletricidade. No fogão de ferro, transformavam-se, mais uma vez, em energia. Fogo para aquecer. Panelas fumegando derretimentos. Torresmo dobrando lados. Convite para aproximar vizinhos. Amigos. Estudantes da minúscula escola.

_ João!? Comprou os livros? – a esposa interrogava o poeta dedicado.
_ Comprei! Poucos. Cada vez menos. O preço faz doer as orelhas de qualquer um.
_ No próximo mês eu colaboro.

João, sempre atento aos investimentos, pensou que a esposa lhe acalmava o coração de professor. Não havia como colaborar mais. Mensalmente, separava uma quantia de seu parco salário para comprar algumas obras. Mais, no começo. Menos, agora. Voltara com dois volumes para o primeiro ano. Precisavam aprender a gostar de leitura. E precisavam ler as ilustrações. Ler o mundo que apresentava a cada dia mais paradoxal.

_ João? Ei, João?

A voz apurando preocupação saiu de dentro da mata. Em direção ao atracamento da balsa.

_ Professor? Professor?

João virou-se em direção ao chamado.

CONTINUA


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