O passado disciplinado: no lugar dele, pensar sobre o Brasil

Alexandre Fernandez Vaz

Foi em uma longínqua manhã de terça-feira que, numa aula da disciplina Educação Moral e Cívica (EMC), tive meu primeiro conflito mais duro com a figura docente, quando a professora de plantão não gostou nem um pouco de uma crítica que dois colegas e eu fizéramos ao General João Baptista de Oliveira Figueiredo. Da Cavalaria para o Serviço Nacional de Informação (o famigerado SNI), de lá para a Presidência da República, dela ao ostracismo, esse foi mais ou menos o movimento do último ditador que tivemos. Não deixou saudades, menos ainda quando, em mais um de seus rompantes autoritários, recusou-se a passar a faixa presidencial para José Sarney, o vice que teve que ser empossado às pressas, dada a impossibilidade de que Tancredo Neves, o eleito pelo Congresso, comparecesse à cerimônia de 15 de março de 1985, dois meses depois das eleições indiretas. 

A crítica que nós, meninos de onze ou doze anos, fizemos à lamentável figura (que ademais, a três por quatro se via satirizado pelos programas de humor da tv e por jornais de oposição, como o Pasquim) nem era nada, mas foi o bastante para uma reprimenda severa da reacionária professora. Do que mais me lembro daquelas aulas? De ser obrigado a decorar o hino nacional, de aprender e desaprender sobre os brasões das Forças Armadas e pouco mais, pouco menos. 

A repetição eu viveria anos depois, na forma de uma farsa, claro, quando tive que frequentar Organização Social e Política do Brasil (OSPB), em um momento mais derradeiro do governo de exceção, quando já havia algum constrangimento em defender os militares e sua suposta inclinação para a retidão e a ordem. A coisa ficara mais branda e não havia mais lugar, no antigo terceiro científico, para o ufanismo canhestro que eu tivera que suportar na sexta série ginasial. Em debate estava o parlamentarismo e, vejam só, fez parte das atividades da disciplina uma palestra com o então senador Jorge Konder Bornhausen, de longa carreira, andando pela direita, aliado da ditadura e depois do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). O político catarinense defendia – como aliás também o faria FHC, anos depois – o parlamentarismo como opção ao presidencialismo, talvez porque já farejasse a volta da democracia, sendo melhor, quem sabe, um presidente eleito, mas controlado por um primeiro-ministro que tivesse o sustento do Congresso Nacional. Por vias um tanto tortuosas que passam pela Carta Constitucional de 1988, de claro molde parlamentarista, finalmente não foi preciso mudar o regime para que parte do congresso se organizasse como coalizão fisiológica que tem sustentado todos os governos desde o fim da ditadura. É o que Marcos Nobre chamou de peemedebismo. Os dois mandatários que perderam, em algum momento de suas gestões, o apoio do que costumamos chamar de Centrão, foram defenestrados da cadeira presidencial. Eis o que aproxima Dilma Rousseff e Fernando Collor de Mello. Nada mais. 

Logo depois daquela experiência um tanto anódina, que foi OSPB, ingressei na Universidade e nela também tínhamos uma disciplina equivalente àquelas que habitavam o que chamamos hoje de ensino fundamental e de ensino médio. Eram trinta horas-aula em cada um dos dois semestres, obrigatórias para todos os cursos de graduação: Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB I, EPB II). Haveria uma Assembleia Constituinte, e lá estávamos nós sendo engajados pelos professores no debate, um tempo em que o receio da regressão ao arbítrio se misturava com a genuína esperança de que algo podia, de fato, mudar no Brasil. Além disso, já se podia ler, sem muito medo, os intérpretes críticos do país. Foi na segunda edição de EPB que me debrucei pela primeira vez sobre um texto de Celso Furtado – que era ademais o Ministro da Cultura –, desencadeando uma admiração que só cresceu ao longo dos anos. Era por dentro de um entulho ditatorial, a existência de EPB, que ótimos professores e professoras apresentavam um Brasil que podia ser democrático e tematicamente interessante.

Por sorte, a ideia sinistra de ressuscitar a disciplina Educação Moral e Cívica não prosperou no atual governo da Nação. As confusas administrações do Ministério da Educação que se foram sucedendo desde 2019 não foram capazes de muita coisa, o que, considerando o que poderiam ter feito, não é notícia de todo ruim. Que a EMC fique no passado, assim como a ditadura também deveria ter ficado; mas não esquecidos, o regime autoritário e a escola que exercia sua pedagogia. Sem nacionalismos, sem patriotadas, pensemos no Brasil que habitamos, no país que nos habita. Nos fará bem.

Ilha de Santa Catarina, abril de 2022.

Para saber mais 

NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

PAIVA, Marcelo Rubens Paiva. Não és tu, Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.


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