Escola, bolinhas de papel e cidadania

Daniel Machado da Conceição

O exercício da docência, isto é, estar em sala de aula com as novas gerações é um momento único para perceber as tensões de uma sociedade em contínua transformação. O processo de socialização secundária é papel da escola, assim como seus conteúdos e as regras de sociabilidade que deveriam culminar com o desenvolvimento de uma maior cidadania, privilegiando a razão, exaltação do ideal iluminista.

Na sociedade contemporânea pensar o papel da escola, seu propósito na transmissão dos valores e conhecimentos, é algo indiscutível e primordial. Indiscutível por ser a instituição que faz a mediação da nova geração com a sociedade, e primordial como necessidade para não perder a condição de instituição socializadora. Os vários interesses que envolvem o controle da escola (educação) e, especialmente, seu currículo, apontam para sua importância estratégica na construção do modelo de sociedade futura.

A cidadania é expressão que não apenas significa direito e reconhecimento civil, descreve também deveres para manutenção da vida coletiva. No entanto, a sociedade da liberdade, igualdade e ‘pouca’ fraternidade, enfatiza mais os direitos pessoais deturpando boa parte do processo que culmina com aquilo que se deseja combater, uma desenfreada aquisição e manutenção de privilégios.

No exercício da cidadania, sempre que pedimos um exemplo, a imagem do jogar papel no chão é uma das primeiras indicações. Na escola em alguns momentos é surpreendente, pois, a bolinha de papel é seu correlato e perceber a sujeira no chão das salas de aula significa identificar um descompasso.

Minha percepção quando encontro papel no chão, as referidas bolinhas, percebo que como educador e como instituição escolar, erramos. Uma falha que para alguns pode ser relevada, justificada na afirmação de que a sociedade sempre foi assim, uma Síndrome de Gabriela como na música “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi. Outros, alegam a irreverência da sociedade contemporânea que não estipula limites ou ainda que a desestruturação das instituições, entre elas a escola, é a causa das mazelas do mundo.

A partir de tal constatação, posso dizer que estamos equivocados e falhos no processo socializador e educacional. Equivocados quando procurarmos eximir a escola da atribuição de educar, aceitando apenas um papel de ensinar e transmitir conteúdo. Quando fazemos essa alegação deslocamos e isolamos sua a condição socializadora que em sentido amplo produz ou deveria resultar em cidadania.

Socializar é ensinar regras, códigos, comportamentos e atitudes, a diferença está no ideal iluminista, a razão como balizadora e não refém dos valores morais, culturais e religiosos das famílias e de grupos que se apropriam do poder para ditar as normas aceitas.

Precisamos lembrar que muitas famílias não compartilham das mesmas regras de sociabilidade, portanto, aceitar uma educação comportamental ou cidadã universal está levando a escola a desconsiderar variâncias dos valores éticos e morais. A escola realiza a mediação e harmoniza a transição da vida privada para a pública (coletiva). Seu papel foi descrito por Hannah Arendt (2016, p. 141) como “a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo.”

A falha que observo está relacionada com o equívoco de buscar uma educação transformadora esquecendo que ela é socializadora. Ao negar o papel social atribuído a escola estamos agravando o fosso que o processo civilizatório indicou existir, e que ao invés de construir pontes para superá-lo estamos preferindo assorear o rio.

Se a escola não ressignificar o seu papel e voltar a assumir seu protagonismo na formação cidadã, para além da responsabilidade de transmissão do conteúdo, o processo civilizatório irá ruir por completo. Não sabemos o que colocar no lugar, nem se há algo melhor e imediato para resolver o problema, mas precisamos admitir que o verniz civilizatório deixou de existir fazendo com que as relações estejam pautadas no conflito e pelo sentimento de desesperança.

A escola ao negar sua responsabilidade socializadora, dizendo que a educação dos seus estudantes vem de casa, sinaliza o equívoco que se instaurou no processo educacional, pois, nega seu papel em sentido amplo, proporcionar a formação cidadã. 

A bolinha de papel no chão da sala de aula, fora da lata de lixo, apenas mostra para comunidade escolar que estamos distantes e sem orientação sobre o rumo que devemos seguir. A escola precisa repensar sua postura e assumir fazer a mediação do contrato social, centralizar apenas nos conteúdos e na forma de transmiti-los está permitindo a instauração lenta e gradual da barbárie.

As bolinhas de papel no chão representam a ausência de uma cidadania não apreendida e revela ser a negação da própria escola. Hannah Arendt alerta que deveríamos educar de modo que um por-em-ordem continue no horizonte possível, mesmo que seja difícil assegurá-lo. A diminuição das bolinhas de papel deve ser almejada como exercício de cidadania e ainda mais, como resultado que sinaliza ser a escola uma instituição capaz de socializar para a vida coletiva e não simplesmente para os interesses individuais.  

 

Para saber mais

ARENDT, Hannah. A crise na educação. In:___. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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