O 11 de Setembro em quatro atos: educação e consciência histórica

Alexandre Fernandez Vaz

No sábado passado, 11 de setembro, morreu, aos 86 anos, Abimael Guzmán, líder do Sendero Luminoso, principal grupo guerrilheiro peruano. Desde 1992, ele cumpria prisão perpétua, após ter sido preso e exibido em uniforme listrado, no interior de uma jaula. Alberto Fujimori, então presidente da república, mostrava o resultado de uma das suas principais metas, a de vencer o terrorismo; desejava fazer isso como se fosse uma cena de cinema. Que a evocação a um esquema do entretenimento se coloque para apresentar um detento – o que temos na memória imagética? Os Irmãos Metralha? –, não deixa de chamar a atenção. No Brasil, também tivemos um exemplo recente de recurso à indústria cultural, quando a Marinha fez uma manobra de treinamento ao som da música-tema de Missão Impossível e com transmissão da TV Brasil.

Há trinta e oito anos, também em um 11 de setembro, houve um golpe militar no Chile, que depôs o presidente socialista eleito Salvador Allende. Tortura, medo, assassinatos, foram a tônica do que começou com aquele dia maldito que viu o Palácio de La Moneda ser bombardeado, ao que se somou não só a destruição de um projeto de justiça social – tão importante para o país, quanto para a América Latina –, mas a instituição, ao longo dos anos, do modelo neoliberal mais cruel. Inaugurou-se com Pinochet a combinação macabra entre reacionarismo social e político e liberalismo econômico, mais ou menos como gostariam que acontecesse no Brasil – e que acontece, ainda que de forma mais que caricatural.

São duas as décadas que nos separam no 11 de setembro mais famoso, o do ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, por meio de dois aviões comerciais sequestrados e feitos de mísseis, uma vez levados a se chocar com os espigões que eram símbolo da cidade. Complexo de edifícios batizado com nome que alude um local de transações econômicas mundiais, acabou se tornando o marco zero de uma ordem que, se não se desliga daquela que tinha a Guerra Fria como seu denominador, apresenta características muito peculiares. A revanche estadunidense, animada pela disputa pelo Oriente Médio, como já acontecera anos antes na Guerra do Golfo, deixou sequelas e feridas, o que inclui a barbárie de Abu Ghraib e Guantánamo.

Foi também em um 11 de setembro, mas há 118 anos, que em Frankfurt, Alemanha, nasceu Theodor W. Adorno, que escreveu um bocado de coisas sobre educação e sua tarefa de resistir à barbárie. Na metade dos anos 1960, o nome do indizível era Auschwitz, mas também o massacre dos armênios que a Turquia até hoje nega haver existido. A preocupação do filósofo era, no entanto, mais ampla, a da reincidência do que há de pior porque as condições que o geraram seguiam vigentes. Entre elas, os pressupostos do fascismo.

Há algo que unifica esses quatro momentos, afora a efeméride de que aconteceram na data que, como as outras, se renova a cada ano. Adorno evocou a urgência da reelaboração do passado, de tomá-lo de forma consciente para que possa haver justiça com a história e com quem a realizou, para que estes não sejam apagados daquela, para que os algozes não passem sem punição. De outra forma, não só a injustiça perdura, mas o que passou se mantém como constante ameaça. Quem vive no Brasil saberá identificar como isso acontece entre nós.

Não sou dos que pensam que as insurreições latino-americanas contra governos ditatoriais ou autocráticos foram ilegítimas, muito pelo contrário. Mas, travestido de esquerda, uma parte dessas iniciativas foi simplesmente terrorista (tiranizando, sequestrando, roubando e matando populações vulneráveis), ainda que não mais, ressalte-se, do que tipos como Fujimori, em cujo governo houve quem fosse condenado à prisão perpétua de forma sumária e com juízes encapuzados. Ou como Pinochet, ou George Bush e sua terrorista guerra contra o terror.

Os efeitos de tudo isso são vistos hoje, e o recente resultado das eleições no Peru não me desmentem. Keiko Fujimori, a filha do pai, por muito pouco não alcançou a cadeira presidencial. Enquanto isso, o Chile, de muita concertación e pouca transformação, se debate de forma violenta contra a dilapidação do patrimônio público e o abandono dos mais pobres à própria sorte. Quanto aos Estados Unidos, acabam de relegar ao mundo mais um problema de grande monta.

Eis uma tarefa da qual a educação não pode se furtar, a da consciência histórica. Esta parte do presente, já que é de nossa experiência que se trata, mas se volta ao passado, sem condescendência ou autocomiseração. Educar para uma sensibilidade democrática supõe que a escola rivalize com a indústria cultural, renunciando ao espetáculo que entorpece, excita e faz esquecer. Não, a história não tem trilha sonora de Missão Impossível. Ao contrário, é com o possível (o utópico, portanto!) que ela opera. Aliadas imprescindíveis para isso são a crítica e autocrítica radicais, sem as quais não há como escapar do labirinto do trauma. Para exercê-las é preciso ter coragem. 

 

Para saber mais:
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2020. (Tradução de Wolfgang Leo Maar). 

11 de Setembro – projeto com 11 filmes de curta-metragem, dirigidos por Ken Loach, Samira Makhmalbaf + nove cineastas (2003).


Imagem de destaque: Pedro Encina – Palacio de la Moneda, Chile, 11 de Setembro de 1973.

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