Carta do Brasil (de Eça de Queirós) – Eliane Marta Teixeira Lopes

Carta do Brasil (de Eça de Queirós)

Eliane Marta Teixeira Lopes

“Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rica família dos Açores…” e é dele a carta que, não tendo sido enviada do Brasil, denomino Carta do Brasil. Uma carta que hoje, talvez, o Brasil ainda assinasse. É esta a história da educação que deixo que a carta fale.

 Ora, Fradique Mendes é, mais que outros, personagem de Eça de Queiroz e personagem de si mesmo. Foi criação do grupo de literatos e artistas que se uniram em torno de Antero de Quental, nascido da necessidade de se oporem a uma sociedade a seus olhos burguesa, mesquinha, e medíocre. Fradique Mendes rendeu a quase todos: Antero escreveu poemas em seu nome e em 1870 é personagem do Mistério da Estrada de Sintra  de autoria de Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz. Aos poucos, ficou pertencendo a Eça, que moldou-o e introduziu-o em sua vida, oferecendo a ele os seus amigos e o seu amor. “ (…) Fradique , no nosso tempo, era um pouco cômico. Este novo Fradique que eu revelo é diferente – verdadeiro grande homem, pensador original, temperamento inclinado às ações fortes, alma requintada e sensível… Enfim, o diabo!(…) Tenho tantas coisas a contar dele, tão curiosas!…” E foi simultaneamente, no Repórter, em Lisboa e na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro que começou a ser publicada a Correspondência de Fradique Mendes. “São, como compreendeis, as cartas de um homem notável que jamais existiu, mas que morreu e do qual publico todos os papéis íntimos, cartas, bilhetes etc., como hoje se faz para os homens célebres.” “… há aí muitas ‘personalidades’ e Fradique sendo um contemporâneo, fala muito de seus contemporâneos e mesmo de suas contemporâneas”

 A carta XXIV é destinada ao dileto e mais íntimo  amigo – não imaginário -, Eduardo Prado, o brasileiro pai de Paulo Prado, que fazia parte da roda de fiéis que conviviam com Eça, fosse em Lisboa, fosse em Paris ou Londres. Dentre os brasileiros, ainda: Olavo Bilac, Domício da Gama, Alberto de Oliveira, José Veríssimo, Antonio Nobre, Joaquim Nabuco.

 A relação de Eça com o Brasil é também familiar, já que seu avô, Joaquim José de Queiroz, servira como ouvidor, de 1818 a 1821 no Rio de Janeiro, onde lhe nasceu o filho José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz. 

 De Paris, em 1888, assim escreve Fradique Mendes a Eduardo Prado:

 Mais duro e complicado é que eu lhe dê a minha opinião sobre o seu Brasil… e V. menos céptico que Pilatos, exige a verdade, a nua Verdade, sem chauvinismos e sem enfeites… Onde a tenho eu, a Verdade?(…) Só lhe posso comunicar uma impressão de homem que passou e olhou. E a minha impressão é que os brasileiros, desde o Imperador ao trabalhador, andam a desfazer e, portanto, a estragar o Brasil. Nos começos do século, há uns 55 anos, os brasileiros, livres dos seus dois males de mocidade, o ouro e o regime colonial, tiveram um momento único, e de maravilhosa promessa. Povo curado, livre, forte, de novo em pleno viço, com tudo por criar no seu solo esplêndido, os brasileiros podiam nesse dia radiante, fundar a civilização especial que lhe apetecesse com o pleno desafogo com que um artista pode moldar o barro inerte e fazer dele à vontade, uma vasilha ou um deus. Não desejo ser irrespeitoso, caro Prado, mas tenho a impressão que o Brasil se decidiu pela vasilha.

 Ai de nós que cento e dois anos depois confrontamo-nos com essa vasilha. A vasilha de que fala Eça é principalmente a da imitação pois o que queria ele  era um Brasil natural espontâneo, genuíno, um Brasil nacional e não esse Brasil que eu vi, feito com velhos pedaços da Europa, levados pelo paquete e arrumados à pressa, como panos de feira, entre uma natureza incongênere, que lhe faz ressaltar mais o bolor e as nódoas.

 E sua carta, crítica, mordaz, mas também cheia de preconceitos e idéias sobre os “bons selvagens” em que deveríamos nos tornar ou permanecermos continua…

 (…) Os velhos e simples costumes foram abandonados com desdém: cada homem procurou para a sua cabeça uma coroa de barão, e, com 47 graus de calor à sombra, as senhoras começaram a derreter dentro dos gorgorões e dos veludos ricos. Já nas casas não havia uma honesta cadeira de palhinha, onde, ao fim do dia, o corpo encontrasse repouso e frescura: e começavam os damascos de cores fortes, nos móveis de pés dourados, os reposteiros de grossas borlas, todo o pesadume de decoração estofada com que Paris e Londres se defendem da neve, e onde triunfa o Micróbio. Imediatamente alastraram as doenças das velhas civilizações, as tuberculoses, as infecções, as dispepsias, as nevroses, toda uma surda deterioração da raça. E o Brasil radiante – porque se ia tornando tão enfezado como a Europa, que tem três mil anos de excessos, três mil anos de ceias e de revoluções!

 ( … ) Para que prolongar um inventário doloroso? Bem cedo, do Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou: nem sequer brasileiros, porque só havia doutores – o que são entidades diferentes. A nação inteira de doutorou. Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda sorte de funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores, com carteira, fundando bancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios; doutores, com um apito, dirigindo a polícia; doutores, com uma lira, soltando carmes; doutores, com prumo, construindo edifícios; doutores, com balanças, ministrando drogas; doutores, sem coisa alguma, governando o Estado!

 (…) São estes doutores brasileiros de nacionalidade mas não de nacionalismo, que , cada dia, mais desnacionalizam o Brasil.

 (…) Percorri todo Brasil à procura do novo e só encontrei o velho, o que já é     velho há cem anos na nossa Europa – as nossas velhas idéias, os nossos velhos hábitos, as nossas velhas fórmulas, e tudo mais velho, gasto até ao fio como inteiramente acabado pela viagem e pelo sol.(…)

 E haverá remédio para tão duro mal? Decerto! Arrancar o tapete sufocante. Mas que Hércules genial empreenderá este trabalho santo? Não sei.(…)

 Não vejo outra salvação mas no dia ditoso em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, a ser do novo mundo – haverá no mundo uma grande nação. Os homens têm inteligência; as mulheres têm beleza – e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bondade. Ora uma nação que tem a bondade, a inteligência, a beleza (e café, nessas proporções sublimes) – pode contar com um soberbo futuro histórico, desde que se convença que mais vale ser um lavrador original, do que um doutor mal traduzido do francês. Não me queira mal por toda esta desordenada franqueza, e creia-me tão amigo do Brasil como seu.                           

Fradique Mendes

 A morte de Eça, 16 de agosto de 1900, em Paris, foi assistida por alguns brasileiros; no Brasil, foi comentada por Machado de Assis: 

 Que hei de dizer que valha esta calamidade? Para os romancistas é como se perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais valido.(…) Por mais esperado que fosse esse óbito, veio como repentino. Domício da Gama, ao transmitir-me há poucos meses um abraço de Eça, já o cria agonizante. Não sei se chegou a tempo de lhe dar o meu. Nem ele, nem Eduardo Prado, seus amigos, terão visto apagar-se de todo aquele rijo e fino espírito, mas um e outro devem contá-lo aos que deste lado falam a mesma língua, admiram os mesmos livros e estimavam o mesmo homem. 

 Pouco há de meus comentários nessas páginas. Quase não há nada mesmo. Que me perdoem os mais rigorosos, mas para que hei de falar eu, se está tudo dito por eles? Apenas cumpri a minha parte, incumbida que me senti por Machado de Assis, e conto o que posso aos que deste lado falam a mesma língua.

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