Cultura do estupro: um pouco do que a educação e os homens podem fazer contra ela – Alexandre Fernandez Vaz

Cultura do estupro: um pouco do que a educação e os homens podem fazer contra ela

Alexandre Fernandez Vaz

No começo dos anos 1960, Theodor W. Adorno proferiu uma conferência que seria uma de suas poucas – e notáveis – contribuições diretas sobre o tema da educação. O filósofo que se tornava uma figura de intervenção pública na República Federal da Alemanha, depois de sua volta do exílio imposto pelo nacional-socialismo, falava sobre a luta contra o antissemitismo e o lugar que a educação nela encontraria. Para Adorno, tratava-se de a escola resistir aos imperativos psicossociais sedimentados, frequentemente de forma clandestina, nas crianças. Sem desprezar os condicionantes sociais e históricos do antissemitismo, o filósofo destacava, em um momento importante de sua fala, o papel da família em tal sedimentação.

Segundo a exposição de Adorno em Para a luta contra o antissemitismo hoje, reflexão alimentada por resultados de pesquisas que o Instituto de Investigação Social de Frankfurt, por ele dirigido em conjunto com Max Horkheimer, o preconceito seria intercambiável. Ou seja, seu mecanismo permaneceria mais ou menos fixo, mas a vítima variaria conforme o contexto social e histórico. Não fosse assim, o preconceito seria resultado de características ou atos da vítima, o que não é, de forma alguma, o caso. Mecanismo complexo, o preconceito se refere às projeções do preconceituoso e da preconceituosa, que acabam por “encontrar” na vítima um lugar para elas. Neste quadro, seria preciso especial atenção, escreve Adorno, ao comportamento excludente entre as crianças, à imposição de poder por parte de umas em relação às outras por meio da força física ou da ameaça da voz. Contra isso e muito mais, Adorno defende a necessidade de valorizar a fala correta e articulada – aquela que, lembremos, está na base do entendimento mútuo e, futuramente, da política – assim como as amizades individuais. Contra a tirania do coletivismo e a frieza burguesa, um pouco de calor nos afetos positivos compartilhados de forma mais direta.

As assertivas de Adorno me vêm à mente em função da extensa e aguda discussão que toma corpo no Brasil em função do que tem sido chamado – corretamente, a meu ver – de cultura do estupro. Como algumas e alguns têm destacado, a educação encontra um lugar fundamental na transformação interna dessa cultura que, esperamos, possa em algum momento não tão distante desaparecer.

Assim como o preconceito é um problema para a vítima, obviamente, mas não oriundo dela, a cultura do estupro é uma tragédia que incide fundamentalmente sobre as mulheres, mas de forma alguma tem origem nelas, mas na estrutura patriarcal que conforma nossa sociedade. Superar tal estrutura é tarefa que cabe a homens e mulheres cuja educação está, no entanto, enraizada no patriarcalismo, o que torna tudo tão difícil quanto urgente.

Penso que a educação tem um papel relativamente restrito na transformação social, mas nem por isso pouco importante. Junto com outras práticas, fomentar o entendimento e a amizade entre crianças de gêneros distintos é fundamental, principalmente na direção do respeito próprio e mútuo em relação ao corpo, dimensão inviolável da pessoa. Ao mesmo tempo, acabar com as desigualdades – e com o fomento a elas – no tratamento de meninos e de meninas, de fato, e não apenas discursivamente, é imprescindível. Para tanto, é necessário, além de coragem e paciência, respeitar, mas não ter medo das famílias, frequentemente enraizadas no modelo patriarcal que entre nós impera. Não foram poucas as vezes em que ouvi relatos de professoras e professores de creches sobre as dificuldades em ponderar os estereótipos de gênero enraizados nas crianças. Lembro-me em especial de alguns sobre meninos de cinco ou seis anos empregando vocabulário chauvinista e insultando professoras e estagiárias, bem como sobre o pavor de pais (mas também de mães) frente à possibilidade de que seus filhos, realizando práticas “de meninas”, se “afeminassem”. Se Adorno dizia que o antissemitismo encontra uma fonte fértil de desenvolvimento nas relações familiares, não parece ser diferente com as estereotipias de gênero, uma das bases da cultura do estupro. Isso sem falar, é claro, da indústria do entretenimento, consumida sem filtros e promotora de todo tipo de degradação e ressentimento em relação à mulher. É farto o cabedal de exemplos que, por sua vez, não deixa de encontrar seu lugar nas casas, mas também em escolas e creches.

No entanto, não basta o trabalho com as crianças, ele precisa ser extensivo às diferentes instâncias sociais, e não apenas porque a educação formal pode muito pouco sozinha. Para que isso seja possível, entre outros elementos, devemos reconhecer, cada um e socialmente, o quanto estamos não apenas imersos na cultura do estupro, mas também em que medida contribuímos para que ela se cristalize. São adultos e adultas que educam nas creches e escolas – porque assim deve ser – e a carga histórica que nos oferece moldura e conteúdo precisa emergir ao plano da consciência.

Recorro a dois exemplos pessoais. Há cerca de oito anos presenciei uma situação que muito me chamou a atenção. Uma família amiga estava por uns dias em férias em Florianópolis e o então filho único, com seis anos, tinha a companhia de uma menina da mesma idade, trazida junto, de São Paulo, para aqueles poucos dias de folga escolar de meio de ano. Surpreendi-me – e minha surpresa, ainda que feliz, já diz alguma coisa sobre isso tudo – com o fato de a companhia não ser a de um menino. Recordo-me que pensei, na ocasião, que ali alguma coisa estava se colocando de maneira distinta, que o pequeno João aprendia algo. Lembrei-me, como novamente há poucos dias, do quão pouco tive amizade com meninas, afora algumas da família, antes da juventude, a não ser no cotidiano da escola. Lamentei.

À memória também vem a primeira vez em que me deparei com um crime contra a mulher (dado o silêncio que pairava e ainda paira sobre a violência contra a mulher, possivelmente estivera por perto de outros delitos antes, e é certo que presenciara situações de violência simbólica no âmbito doméstico, mas era muito imaturo para ter-me dado conta dessas situações). Foi em um verão, cujas tardes, antes que o sol abrandasse, passávamos em casa. Frente a um pequeno aparelho de televisão em preto e branco assisti às notícias de um assassinato. Em fins de dezembro de 1976, Raul Fernando do Amaral Street matou a tiros a mulher com quem então vivia, Ângela Diniz. Em 1979, Doca, como era conhecido, foi condenado a dois anos e seis meses de prisão, com direito a sursis, prevalecendo como atenuante a tese da “legítima defesa da honra”, dada a suposta “má conduta” de Ângela. Vi as imagens dos protestos de mulheres, um marco fundamental, fui entender anos depois, do movimento feminista no Brasil. O julgamento acabou anulado e em 1981 Street foi novamente julgado e desta vez condenado a quinze anos de detenção. Tentei na época do primeiro julgamento ser esclarecido sobre o que seria “defesa da honra”, só obtendo algum êxito com minha avó. Segundo ela, tratava-se de outra coisa, de assassinato que, como tal, era gravíssimo e injustificável. Os demais adultos e adultas da casa calaram ou tergiversaram. É possível que tenham colocado algo da culpa na vítima, como tantas e tantas vezes vi acontecer de lá para cá. E que tivessem medo.

Herbert Marcuse sugeriu nos anos 1970 que homens e mulheres poderiam assumir, uns dos outros, características que historicamente lhes foram sendo imputadas, de forma que evoluíssemos para uma sociedade mais andrógina e sem tantas pressões de comportamento de um lado e de outro. A vida seria melhor. Penso que cabe às mulheres, além de sua defesa, da denúncia de maus-tratos e crimes, da exigência de legítimos direitos, que ensinem, digam, orientem, seus amigos e companheiros. E aos homens cabe perguntar, escutar, pensar, aprender. Sobre si mesmos, sobre a sociedade patriarcal materializada em seus feixes mais insuspeitos. Criticar, denunciar, ajudar a garantir os direitos e a proteção das vítimas.

Não é fácil, mas necessário.

 – Agradeço a Laís Elena Vieira pelas críticas e sugestões a versões prévias deste texto, que muito delas se valeu. Equívocos e insuficiências que ainda perdurarem são de minha responsabilidade.

Istambul-Sisli, Berlim-Kreuzberg, junho de 2016.

 

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