Responsabilidade histórica (Delfim Netto e Sílvio Santos)

Alexandre Fernandez Vaz

“Agora sim!”, disse meu pai, há tantos anos, quando Antônio Delfim Netto foi transferido do Ministério da Agricultura para o do Planejamento, durante o governo do general João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985), o último dos ditadores do período de sombras que se iniciara em 1964. Na nova pasta, o economista estaria mais à vontade, ele que compusera os gabinetes de Artur da Costa e Silva (1967-1969) e de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), sempre como ministro da Fazenda. Em tal condição, foi signatário do Ato Institucional número 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, golpe dentro golpe que acabou com o resto das prerrogativas democráticas que ainda vicejavam sob a exceção. 

Um dos arautos do “milagre brasileiro”, aquele ajuste na economia que promoveu o consumo e acelerou a inflação, enriqueceu empresários, fez disparar a dívida externa e quebrou o país, Delfim foi uma figura pública muito singular. Inteligente e informado, foi deputado federal no período pós-ditatorial, sempre na defesa do grande capital e do estado intervencionista, posição que o fez aproximar-se, vejam só, de Luiz Inácio Lula da Silva, a quem apoiou em seus dois primeiros mandatos. Não por acaso, o presidente emitiu uma nota laudatória em tom de autocrítica quando do falecimento do economista, que também era professor emérito da Universidade de São Paulo, no último dia 12. Nela nada constou que pudesse remeter às entusiásticas ligações desse personagem com a ditadura.

“Plante que o João garante” dizia a propaganda de televisão que prometia preço pré-combinado para a safra, nos tempos em que Delfim era ministro de Figueiredo. Chamar o presidente pelo prenome era uma maneira de tentar popularizar a figura truculenta do oficial de cavalaria que chegou a dizer que preferia o cheiro dos cavalos ao do povo. Ele havia sido, ademais, diretor do Serviço Nacional de Informações, a agência de espionagem interna, no governo de seu antecessor, Ernesto Geisel. Outra das maneiras de torná-lo mais simpático ao povo (se fosse hoje, a procura seria por engajamento e mais seguidores) era ser retratado todos os domingos em um segmento do programa Silvio Santos chamado “A semana do presidente”. Em alguns minutos já para o final do dia, o mandatário nacional era bajulado de forma intensa, abordagem que se manteve por duas décadas em relação aos sucessores da cadeira presidencial.

Foi o governo de Figueiredo que concedeu a Silvio o uso do canal de televisão que ele ocupou com o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Com isso, o grande comunicador intensificou a própria presença em boa parte do domingo, ele que já atuara em outras emissoras, como a Globo e a TVS, de sua propriedade desde 1976. Durante as longas horas no ar, havia programação ao vivo com shows, jogos, concursos e outras variadas atrações, mirando o consumo popular em praticamente todas as gerações que, no entanto, eram representadas principalmente por mulheres. A plateia que comparecia ao teatro de transmissões do SBT, na Vila Buarque, em São Paulo, era, aliás, exclusivamente formada por elas. Como apresentador e animador de programas de auditório, Silvio foi insuperável e dificilmente alguém poderá equiparar-se a ele. Como foi dito em outra nota presidencial, mas também por muitos ao longo dos dias que sucederam seu falecimento, ocorrido em 17 passado, uma era da televisão brasileira chegou ao fim.

De fato, no Brasil se viu e se vê televisão como provavelmente em muito poucos ou mesmo em nenhum outro país. Não sendo incomum haver vários aparelhos receptores em uma mesma casa burguesa (um na sala – imponente, soberano, de grandes proporções –, outro no dormitório, talvez um terceiro na cozinha e/ou em um novo quarto de dormir), há hoje também as opções do computador, tablet e celular. Com muito apuro técnico e onipresença nacional, as emissoras de TV brasileira operam no sentido do que uma vez se chamou de razão instrumental: os meios são não apenas adequados aos fins (mesmo que pouco importe que não sejam necessariamente legítimos), mas se tornam, eles mesmos, a finalidade última. No caso da indústria do entretenimento, é de ocupação compulsiva no tempo livre que estamos falando, de dominação social pelos sentidos que, capturados, já não permitem que uma experiência estética autônoma possa acontecer. 

Nesse processo, Silvio Santos, cuja história de fato se confunde com a da televisão do Brasil, foi o mestre dos mestres. Sua capacidade de comunicador encontrou aí uma equivalência: a de produzir conteúdo que anula qualquer possibilidade de que o tempo livre do trabalho se torne o que promete, mantendo-se na mesma lógica de sofrimento que a faina semanal impõe. Repetindo clichês, gerando tensão barata, rebaixando a complexidade, ridicularizando vulneráveis e sabujando poderosos, mobilizou, como poucos, o que há de mais superficial e mesquinho em nós, renovando a promessa jamais cumprida: que aqueles produtos de consumo imediato nos reconciliariam, pelo menos por um momento, com o que o cotidiano nos roubou, fosse isso pelo riso, pela ingênua inocência ou no gozo perverso de deliciar-se com a humilhação alheia. Fez isso sob o pretexto de dar chances para que aspirantes a artistas, desesperados por fortuna, carentes de amor, encontrassem uma resposta, uma “porta da esperança”. Para aqueles que dizem que esta crítica é elitista e não reconhece a memória afetiva popular, sugiro que tentem imaginar se as pessoas não merecem algo melhor, que entretenha sem rebaixar e desumanizar, em seus parcos momentos de sofá; e que reflitam sobre uma sociedade que o que concede (sob licença estatal) é o direito de afundar-se frente à TV e ser cativado, aos risos, pelas imagens de moças e senhoras se engalfinhando em torno de cédulas atiradas pelo apresentador. Afinal, quem não quer dinheiro, não é mesmo?!

Reconheço as histórias de Delfim e de Silvio, a inteligência e a obstinação que os guiou, embora discorde veementemente do que eles consideraram progresso ao longo de vidas profissionais que, com êxito, edificaram. Sei que ambos são expressão de uma história que os transcende, mas que eles bem representam porque dela foram protagonistas. Respeito o luto das famílias, dos amigos, mas isso não pode fazer esquecer o quanto contribuíram, cada um a seu modo, para nossa modernização reacionária e excludente. Um pouco de responsabilidade histórica, por favor.

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