Memórias da escola 23

Cleide Maciel

Ao longo da minha trajetória na docência, fui deixando “pegadas” nos mais diferentes lugares: da pré-escola ao ensino superior, tanto em escolas públicas quanto particulares. Por um bom tempo, pensei que minha vida profissional tivesse a aparência de uma colcha de retalhos! Parecia não me firmar: a cada ano, novos programas, novos livros, novos planos de aula, além dos novos alunos, o que sempre já era esperado. Se, sob esse olhar “de dentro”, a fragmentação parecia óbvia, de fora, minha percepção via unidade e coerência. Afinal, estava trilhando a carreira do magistério, ancorada por formação específica no campo: os cursos Normal e Pedagogia! Então, qual o problema nessa passagem de fora para dentro (e vice-versa), alterando radicalmente minha percepção?

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Os egressos da Escola Normal (majoritariamente, egressas), tinham “destino certo” para o trabalho: a escola primária (crianças de 7 a 10/11 anos) e a pré-escola (6 anos). Seríamos regentes ou professoras de uma turma de alunos, por um certo tempo, que poderia durar dias, mês/es ou ano/s dependendo da nossa situação funcional, se contratadas ou efetivas. À exceção da 4ª série primária, lecionei em todas as demais. Como eu fazia? Consultava os programas oficiais de ensino, os livros didáticos disponíveis na biblioteca da escola e os planos de aula produzidos nos anos anteriores pelas professoras mais experientes (além das próprias professoras). Não contávamos com supervisora pedagógica nem orientadora educacional. A diretora do grupo escolar, considerada diretora técnica, nos orientava quanto aos rumos que deveríamos tomar. Nosso trabalho respondia a uma previsão. Apesar disso, a cada ano, eu “enfrentava” uma série diferente e, com isso, novos desafios!

O curso de Pedagogia, iniciado no ano seguinte ao término do Normal, formava o bacharel licenciado. O que significava isso? Que poderíamos atuar como técnicas em educação (como inspetoras e diretoras), ao mesmo tempo em que poderíamos lecionar as disciplinas pedagógicas nas escolas normais. O problema é que, diferente das aulas na escola primária, a oferta de trabalho nas funções previstas para a Pedagogia era muito restrita. Os cargos técnicos, pareciam sempre depender de indicação política. As aulas nas escolas normais não se distanciavam disso: as escolas particulares, que detinham o privilégio de oferecer esses cursos, demandavam recomendação de integrantes do métier. A Pedagogia representou a posse de um diploma que, em termos profissionais, parecia não me servir para nada! Já graduada, continuei como professora primária, recebendo a remuneração compatível com esse nível de atuação. A regência de aulas no ensino de 1º grau (5ª à 8ª séries) e no Ensino de 2º grau – atividade cujos proventos superavam (muito) aos do primário – cada vez mais distante…

Enfim, assinei contrato para lecionar Educação Moral e Cívica/EMC e Organização Social e Política Brasileira/OSPB, em turmas de 5ª à 8ª séries e 2º grau (exceção para o 3º ano), de uma escola particular. Evidentemente, a partir do pedido de uma “fonte privilegiada”. Essas disciplinas, haviam sido recém incorporadas ao currículo escolar pela reforma de ensino que ocorreu durante o período da ditadura civil-militar (Lei 5692/71). Assim, iniciei a minha dupla jornada de trabalho no magistério: um cargo efetivo no Grupo Escolar e um contrato na escola de 5ª/8ª séries e 2º Grau. 

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Não constava do meu currículo orientações sobre como ensinar EMC e OSPB, nem poderia constar. Além disso, meus estudos de psicologia educacional haviam focado na criança e no jovem. A faixa etária equivalente à adolescência, não tinha sido colocada em destaque. Então, eu nada sabia sobre adolescentes. Esse foi o primeiro desafio: como me relacionar com meninos e meninas que estão no meio do caminho entre a infância e a juventude? Não foi fácil! Outra dificuldade foi sobre o que ensinar. As disciplinas eram recentes, não me lembro de haver um programa oficial, mas livro didático já estava em circulação. Era a fonte das minhas aulas. Mais outro obstáculo: uma aula semanal para cada turma, sem possibilidade de reprovação. Ou seja, matérias de baixíssimo prestígio! Desse modo, encontrei-me na seguinte situação: poucas aulas, muitos alunos, muitos diários a serem preenchidos, uma matéria desinteressante, sem poder algum! Só me restava concentrar na capacidade de sedução, o que também não era fácil quando o assunto é moral e ética para adolescentes (e a professora não tem o adequado preparo). E assim, com muita insatisfação, fui levando o trabalho. Até que…

Já casada, tinha ido morar numa outra cidadezinha pequena. Lugar em que todos se conhecem, são meio parentes, encontram-se quase sempre nos mesmos lugares: a igreja, a padaria, o comércio, a praça, os bares, as ruas, o cinema, o clube social… Via meus jovens alunos não só na escola, mas também nesses outros pontos. Uma noite, voltando para casa, encontrei-me com uma turma alegre, cantando bem alto, chamando, aos gritos, os conhecidos por onde passavam e… chutando todas as lixeiras que encontravam pela frente! Em suma, fazendo uma grande bagunça! Passei por eles, calada, como se não tivesse visto nem ouvido nada. Mas aquela cena calou fundo dentro de mim. Não pude fugir à inquietação: – O que eu estava fazendo em sala de aula, falando de civismo/civilidade? Que sentido tinha “ensinar” EMC para jovens, se meus alunos se comportavam como vândalos? Precisava fazer alguma coisa.

A organização de uma campanha para arrecadação de alimentos, a partir das aulas de EMC, talvez não tenha sido uma ideia minha, não sei dizer ao certo. Mas a abracei como uma “tábua de salvação”, para mim e para meus alunos. Minhas aulas passaram, assim, a ser ocupadas com as discussões sobre o planejamento e realização desse empreendimento.  Organizamos equipes (por séries, se a memória não me falha), traçamos estratégias de ação (formas de arrecadar dinheiro para compra de alimentos, contato com os comerciantes locais e pessoas de prestígio, escrita de cartas de pedido e agradecimento…). Também discutimos modos de agir/comportar em diversas situações, tanto as que podiam ser previstas (exemplos: como agir frente a uma negativa, cumprir os compromissos assumidos com a equipe), quanto após os eventos ocorridos. Nunca minhas aulas foram tão dinâmicas! E o diário de classe? Além da frequência, eu ia registrando os conteúdos previstos no plano de curso. Nada que lembrasse o alvoroço das conversas em nossas aulas, mas “perfeito” para qualquer inspeção escolar! A lembrança de um caminhão basculante, no pátio da escola, descarregando sacas e mais sacas de feijão (alimento encarecido, à época), até hoje, enche meu coração de alegria! 

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A percepção de uma carreira cheia de fragmentos, ainda persiste. A escrita das memórias tem me ajudado a dar forma/corpo ao vivido.

24 de março de 2021


Imagem de Destauqe: Gaelle Marcel / Unsplash

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