Alexandre Fernandez Vaz
Comecei a frequentar a Universidade há mais de três décadas, quando ainda quase criança me dirigia ao Centro de Desportos da Federal de Santa Catarina (UFSC) para praticar atletismo. A vinculação com o esporte acabou, mas da Universidade eu nunca mais saí, ingressando como aluno alguns anos depois. Nela passei, portanto, a maior parte da vida, o que talvez sugira um enorme poder de adaptação ao seu funcionamento. Ou a sedução pela comodidade que os seus rituais oferecem, não sei bem. Frequentei cursos de graduação, cheguei à pós-graduação e fui me tornando professor. Participei do Movimento Estudantil, de órgãos colegiados como o Conselho Universitário e a Câmara de Pesquisa, tenho pesquisado, orientado, feito extensão. A maior parte do tempo estive na UFSC, mas passei ou estive de visita em várias outras instituições superiores, no Brasil, na Europa, em outros países da América do Sul.
Nesses anos todos tenho sido testemunha de mudanças sociais importantes, muitas delas com forte repercussão intramuros universitários. Ingressar na graduação foi já uma aventura quase extemporânea, uma vez que as aulas começariam em um 15 de abril e não no costumeiro início de março. Ecos do semestre anterior, que findava com atraso por conta da reposição de aulas depois de uma longa greve de docentes promovida por um sindicato cujo funcionamento era proibido. Mas tampouco foi possível iniciar naquela segunda-feira: nos dias anteriores fora anunciada a morte de Tancredo Neves, presidente civil eleito pelo Congresso Nacional, que, como se sabe, não chegou a assumir o posto. Um dia de luto nacional que adiou em vinte e quatro horas a entrada em um universo que não me era de todo desconhecido, uma vez que vários amigos dele faziam parte e eu mesmo, como disse, já perambulava pelo campus. De qualquer forma, sendo da primeira geração de minha família que completou o Ensino Médio (com exceção da avó materna, formada professora primária na Argentina), não havia tido durante a infância contato próximo e contínuo com acadêmicos. Não fui, portanto, aquele personagem que Bourdieu e Passeron chamaram de “herdeiro”. Naqueles tempos ser professor universitário me parecia algo muito distintivo, imagem que obviamente desmoronou com o tempo, ainda que socialmente ela sobreviva, principalmente, em países com forte tradição aristocrática, como o Brasil.
Além do fim da ditatura cívico-militar que aterrorizou o país durante mais de duas décadas, assisti do lado de dentro da instituição a derrocada da experiência socialista no Leste Europeu e o correspondente fim da Guerra Fria, as primeiras eleições diretas para presidente no Brasil, a estabilização da moeda, as inéditas eleições de um acadêmico, de um operário e de uma mulher para presidente da República. Vi, portanto, o short century chegar ao final, com direito a epílogo – o ataque às Torres Gêmeas –, e o início do século atual, com a empreitada de George Bush no Oriente Médio e as novas configurações geopolíticas e econômicas que mudaram os eixos de poder no mundo. Na manhã dos ataques ao World Trade Center, enquanto ninguém sabia o que de fato acontecia – estava por começar a Terceira Guerra Mundial? – encontrava-me em reunião do Conselho Universitário, debatendo mais uma de nossas greves. À tarde, em uma assembleia de professores no Hall do edifício do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, uma colega, em júbilo, pediu aplausos ao ataque “contra o Imperialismo”. Foi atendida por grande parte da claque presente. Um pouco mais de cautela e um tanto menos de excitação, é o que sugere Marx em seu Dezoito Brumário, uma lição que precisa ser continuamente renovada entre nós.
Nesses anos todos testemunhei o professor universitário minguar como intelectual público, coincidindo com a decadência da Universidade em seu papel de intervenção social. Cresceu muitíssimo a pesquisa acadêmica, com a enorme expansão da pós-graduação, na mesma proporção em que caiu o interesse pelas grandes questões nacionais. A Universidade brasileira não tem sido capaz de assumir a condição de formuladora e porta-voz de projetos de nação. Em seu lugar, amiúde, vivemos a proliferação de eventos e a produção em série de trabalhos que frequentemente não chegam a compor uma tradição intelectual ou científica.
Não dá para dizer que as diferenças entre as universidades limitam-se à troca de endereço, mas minhas experiências em várias delas dão-me a impressão de que essa instituição milenar tem algo de comum seja qual for sua nacionalidade, idade, ou coloração política. O aparato burocrático, o espírito de corpo, o esforço obsessivo de conservação de si mesma, os conflitos entre pesquisa, ensino e extensão, as dificuldades na relação com a sociedade (mesmo quando esta é entendida, de forma restritíssima, como sinônimo de mercado), entre tantos pontos, são mais ou menos presentes em muitas instituições, em especial as brasileiras.
É sobre essas e outras questões que escreverei nos próximos meses neste espaço gerado pelo gentil convite de Luciano Mendes Faria Filho. Depois de termos conversado sobre algumas delas por diversas vezes, resenhei um livro dele com importantes reflexões sobre a vida universitária (Educação Pública: a invenção do presente). Fico contente em poder prosseguir no debate. Abordarei os temas de distintas maneiras, dedicando-me a questões do presente, aos modos de fazer Universidade, no Brasil e no exterior. Tratarei também de literatura e cinema, entre outros artefatos que tenham a vida universitária como tema central ou periférico.
Nos próximos meses, portanto, lhes farei companhia. O potencial leitor tem sempre a possibilidade de recusar a leitura. Menos mal. Exerçam seu direito, mas sintam-se também convidados ao debate.
Valparaíso, Chile, outubro de 2014.