Joaquim Ramos
Sandro Vinicius Sales dos Santos
A morte do tio velho foi pelo avançar dos anos. Nem de mais novo era um homem fácil de lidar. Depois de velho, piorou bastante. Já com mais de noventa, fugiu de casa, pouco antes que a indesejada das gentes viesse buscá-lo – para lembrar Manuel Bandeira. Sentia-se preso ao lar do filho caçula, ao pequeno espaço de terreiro, à nora e ao neto adolescendo. Queria libertar-se daquela gente, daquele mundo… queria fugir dali. Pra onde? Ninguém sabia. No fundo, todos nós, em algum momento da vida, queremos fugir para algum lugar também. Quem não deseja estar em Pasárgada? Com o tio não era diferente e o maior desejo dele era o de liberdade das ruas. Ansiava por estar do lado de fora daqueles muros, num lugar onde a vida e o movimento pulsassem, com força. Dito e feito: tio velho encontrou o portão aberto e se foi rua afora. Um ônibus, um atalho, um jeito pra sumir da vista dos que dele cuidavam. Três dias fora de casa. Os familiares ficaram loucos e já aguardavam a pior das notícias. Queixa na polícia, anúncio em jornais, coisas do gênero. Três dias de sumiço e a família já não sabia mais o que fazer. A própria polícia anunciou, num início de noite, o paradeiro do fugitivo senhor nonagenário. Lá estava ele, esquálido, faminto, maltrapilho e com um osso quebrado. A família quis saber e ao indagar o que havia ocorrido, de maneira única, com voz bastante tremida,tio velho narrou o ocorrido: faminto, entrou num bar, pediu “o de comer” e por não ter dinheiro, foi agredido. Relato feito dessa maneira é para ninguém acreditar, mas, deveras, foi o que aconteceu. Alguém bateu num faminto de mais de noventa anos! Quebrou-lhe um osso. Essas coisas foram contadas pelo filho caçula no velório de tio velho, morto “de idade” alguns meses após essa fuga.
O que o “causo” do tio velho tem a ver com nossa cotidianidade? Vamos à outras barbaridades:
No dia 10 de julho, o presidente Lula esteve no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, para lançar o memorial da democracia. Um pouco antes do evento, alguns jornais da capital mineira anunciavam coisa do tipo: “Lula lança memorial da democracia em BH nesta segunda-feira – A participação no Palácio das Artes deve se tornar palanque para mais críticas ao governo de Michel Temer”.
Nem é segredo de Estado a maneira descabida que a impressa se posicionou a favor do golpe e contra os trabalhadores brasileiros. Desse modo, notícias como essa nem nos assombram. Apenas representam mais do mesmo. Encabeçado pela Rede Globo, outros órgãos da imprensa nacional tripudiam em cima da democracia e da população mais empobrecida, evidenciando o medo da volta de Lula à Presidência da República. Para além da provável crítica que o petista faria a um dos mentores do golpe (Michel Temer), o jornal trata a inauguração de um espaço fundamental de preservação da memória nacional, como subida “inoportuna” de Lula ao palanque. Mesmo explicitando uma pseudo possibilidade, ao utilizar o verbo deve, presume-se que a matéria encobre coisa do tipo “o ex presidente Lula vem a Belo Horizonte para a atividade que melhor ele sabe fazer: conversar com o povo!” e isso causa medo a uma elite tacanha, gananciosa e sem escrúpulos que tenta, a todo custo, barrar a elevação do nível de vida da população mais empobrecida do país – para tanto, conta com o apoio de um poder legislativo corrompido, um poder executivo sem escrúpulos e um judiciário cego, surdo, mudo que prima por acusar inocentes e inocentar criminosos. Esses poderes debocham da cara da população. Quem paga o pato?
Do lado de fora do grande teatro do Palácio das Artes, já com as 1707 cadeiras ocupadas, um grande número de pessoas, ávidas por ouvir e estar próximo de um dos maiores líderes da política nacional, se amontoava na calçada. O convite para o evento circulou amplamente nas redes sociais e, de antemão, era do conhecimento de todos que um grupo contrário ao petista marcaria também presença, com faixas, bandeiras e palavras de ordens. E foi o que ocorreu. Talvez uma centena de opositores – em sua maioria jovens – do outro lado da avenida, vociferavam contra o presidente mais amado e mais odiado que esse país já conheceu. Uma enorme bandeira com uma imagem do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e de Jair Bolsonaro foi levantada junto a uma faixa que trazia os seguintes dizeres “Lula ladrão roubou a nação”. Isso mesmo, colado um ao lado do outro, a figura desses dois homens tremulava na grande bandeira. Incrédulo, lembrei do tio velho. Nele e em seus algozes. “Há gente de todo jeito no mundo”, pensei meio entristecido. Se nas lutas que travamos, é preciso considerar pessoas que maltratam velhinhos; no campo da política é preciso estar atento, por mais inverossímil que possa parecer, a alguns homens e a algumas mulheres que fazem apologia ao inominável. Por mais que não queiramos, esse pequeno amontoado de “detratores” do Presidente Lula pode crescer e tornar-se desmensurado. Quem conhece a história já viu alguns filmes assim.
Walter Benjamin, filósofo alemão que viveu de perto os horrores da segunda guerra mundial, afirma de modo enfático que durante esse período medonho de nossa história, deu-se início a um processo de transformações das relações sociais. As pessoas perderam, progressivamente, a capacidade de narrar experiências memoráveis. Segundo ele, a partir deste período os indivíduos passaram a reagir a choques (o que ele chama de vivência) em função do esfacelamento da experiência. Para Benjamin, a memória coletiva já não era capaz de construir uma narrativa que desse conta de abarcar a plenitude da experiência humana.
Então, que esses tempos sombrios e difíceis como os que vivemos na atualidade, não nos deixem esquecer que grande parte da população alemã, em um período de rupturas, desemprego e falta de perspectiva se convenceu de que a saída passava pelo aniquilamento de seis milhões de semelhantes. Segundo Benjamin, foi esse acontecimento histórico que deu fim a capacidade de as pessoas narrarem acontecimentos que lhes eram inesquecíveis. Por isso, nos causa estranheza a existência de grupos como os que erguiam a bandeira de Bolsonaro/Coronel Ustra, em frente ao Palácio das Artes, do outro lado da avenida, tendo a firme convicção de estar do lado certo da história. A memória, como alerta Mary Del Priore, é que ajuda na compreensão da nossa identidade e contribui para revitalizar a nossa própria história, pois “conhecer a memória e a história dos outros colabora para construirmos a nossa, nos aceitando e corrigindo injustiças, compartilhando valores e organizando um ‘viver junto’”.
Desse ponto de vista, é no mínimo estarrecedor que as pessoas como aquelas que proferiram ataques ao Presidente Lula na porta do Palácio das Artes, evidenciem e evoquem nomes de militares como o do Coronel Brilhante Ustra e de Jair Bolsonaro, figuras que indubitavelmente – assim como ocorreu com os nazistas na Alemanha –estiveram à frente do extermínio de centenas de brasileiros nos anos de chumbo. Não sabemos se, como afirma Walter Benjamin, são estas pessoas que reagem aos choques que a realidade lhes provoca ou se somos nós (pessoas que lutam cotidianamente contra os desmandos de um governo ilegítimo e golpista) quem mais se choca com situações que retroalimentam a banalidade do mal, como diria Hannah Arendt.
Se a memória é mesmo inventada pelas pessoas e atravessada por interpretações produzidas dentro de certos contextos, é mais do que necessário buscar compreender por que razão algumas pessoas tendem a encontrar no mal a solução para todos os problemas. Será tão difícil dimensionar a dor alheia? Será que não conseguimos, por analogia, entender que a homofobia, o racismo, a xenofobia, o genocídio já não deveriam caber mais dentro de nós? Qual o sentimento de quem quebra os ossos doe um nonagenário senhor? Por que pulsa também em nós, assim como no tio velho, um desejo incomensurável de encontrar o portão aberto para, de novo, alcançarmos o patamar mínimo de justiça e de liberdade, em um país que perdeu o princípio básico do respeito à alteridade? Por que fazemos apologia a torturadores? Por que ressoa dentro de nós o forte desejo de voltarmos a ter orgulho de nossa pátria mãe tão distraída? Onde está a chave do portão? Vamos “embora” pra Pasárgada, aqui parece não ter mais jeito: há gente batendo em velhinhos, há gente pedindo a volta de militares, há gente que… “perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem”.
Por isso tudo, o memorial da democracia é um instrumento importante para nossa brava gente brasileira. Sigamos! Na firme convicção de que há muito ainda o que fazer. “Bora” lá?