Marcela Alves de Lima Santos*
Os desastres resultam de condições de ameaças e vulnerabilidades anteriores e afetam a capacidade de uma comunidade construir respostas apenas a partir de recursos próprios. As consequências envolvem desde mortes e lesões até o deslocamento forçado de grupos populacionais trazendo perdas materiais, culturais, simbólicas e patrimoniais. Nesse contexto, a atuação em Saúde Mental e Atenção Psicossocial torna-se essencial para o processo de reconstrução.
O rompimento da Barragem de Fundão, pertencente à mineradora Samarco e suas mantenedoras VALE e BHP Billiton, ocorreu em 05 de novembro de 2015 no município de Mariana. Nesse desastre, comunidades foram destruídas, 19 pessoas morreram e aproximadamente 300 famílias foram deslocadas da área rural para a área urbana em consequência de um processo de desterritorialização. Nas comunidades rurais de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, as unidades de saúde e escolas também foram devastadas pela lama e passaram a funcionar em outros espaços físicos do município de Mariana.
Em situações de desastres, crianças e adolescentes são apontados como um dos públicos mais afetados considerando as especificidades desse período de desenvolvimento. É importante considerar que as pessoas apresentam diferentes reações e formas de enfrentamento diante de uma situação de crise e nem todos os problemas psicossociais podem e/ou precisam ser identificados como uma doença. Algumas alterações de comportamento e de humor são consideradas esperadas diante de uma situação de tantas perdas e mudanças nos modos de vida. Diante de um contexto de sofrimento não apenas individual, mas também coletivo e social, existe a necessidade de restabelecer as redes socioafetivas e comunitárias.
As ações em saúde mental e atenção psicossocial de crianças e adolescentes demandam um olhar ampliado sobre as singularidades, mas também sobre as condições de vida e a realidade social. Dessa forma, a atuação interprofissional e a articulação intersetorial são de extrema necessidade para a construção de um cuidado de forma integral e humanizada. Assim, as escolas aparecem como um espaço potente de diálogo e de construção de intervenções voltadas para o enfrentamento e ressignificação coletiva junto a esse público.
Durante o trabalho desenvolvido junto às escolas atingidas em Mariana, os relatos dos profissionais da área da educação, ao longo do primeiro ano, são de revolta e medo em relação ao que havia ocorrido e de uma grande saudade dos territórios destruídos. A perda da liberdade também era fala frequente entre os adolescentes, que relatavam sentir falta do ir e vir sem sentir medo, do contato com a natureza e das conversas na praça que agora passaram a ficar apenas na memória daqueles que foram deslocados para a área urbana (SANTOS, 2018).
Também foram identificadas situações de hostilização de crianças e adolescentes que precisaram compartilhar o espaço de uma outra escola nesse período. Eles foram identificados como “pé-de-lama” e outras categorias depreciativas e as consequências da exclusão passaram a ser vivenciadas também no contexto escolar. Diante dessa situação, foi preciso desenvolver intervenções conjuntas buscando desconstruir preconceitos e minimizar os impactos da estigmatização.
O cenário pós-desastre é de ruptura de vínculos sociais, familiares e comunitários e de dificuldade de adaptação ao novo território. A escola tornou-se o principal e, às vezes, único local de encontro entre essas crianças e adolescentes. Dessa forma, passa a ser um espaço ainda mais importante por oportunizar essa interação e também a integração de toda a comunidade.
Aos poucos, essas dificuldades foram sendo enfrentadas e as escolas foram se fortalecendo a partir de estratégias de atuação com propostas que fossem significativas para as crianças e adolescentes e familiares. Assumiram papel essencial no processo de reconstrução junto às crianças e adolescentes enquanto espaço de escuta e acolhimento e para o desenvolvimento de ações voltadas para o resgate e preservação das memórias individuais e coletivas e a construção de estratégias de enfrentamento e ressignificação diante de um outro território permeado por todas as novas exigências sociais, culturais e econômicas.
Em um desastre de grandes proporções e caráter destrutivo, os impactos se prolongam e atingem os mais diversos espaços de vida das comunidades. Nesse sentido, a atuação em saúde mental e atenção psicossocial não deve ser construída a partir de um único setor. A interlocução entre atores de diferentes áreas como saúde e educação possibilita a construção do cuidado psicossocial de forma ampliada, com foco no protagonismo de crianças e adolescentes e na ressignificação de laços sociais e comunitários.
Referência:
SANTOS, Marcela Alves de Lima. Eu quero minha liberdade de volta! Saúde Mental e Atenção Psicossocial junto aos Adolescentes Atingidos pelo Rompimento da Barragem de Fundão. [dissertação]. Belo Horizonte: Instituto René Rachou. Belo Horizonte; 2018. 90 p.
* Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas
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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.
Imagem de destaque: Ruínas da Escola Municipal Bendo Rodrigues. Mariana/MG. Foto: Flávio Ribeiro/Portal VERTICES (15/10/2016)