Memórias da Escola 20

Cleide Maciel

Desde cedo, em minha vida, o Sete de Setembro foi uma data marcante! Duas festas seguidas: a do meu aniversário, na véspera, e a da comemoração cívica. A primeira, em casa, junto aos familiares; a segunda, na rua, junto aos colegas e professores da escola. Os preparativos e os eventos, em ambas ocasiões, não seguiram a mesma lógica. A preparação para comemorar a Independência do Brasil foi, de longe, muito mais intensa e trabalhosa. Entretanto, os dias dessas festas ficaram marcados, igualmente, na lembrança. E, tal como meus aniversários, os registros do Sete de Setembro seguem as etapas da minha existência.

 *********

No tempo como aluna da escola primária, a data começava a ser marcada com as aulas de canto. O treino para memorizar e cantar o hino nacional durava mais, quanto mais novos fôssemos. Decorar a letra do hino foi, sem dúvida, muito mais fácil que sua melodia. Apesar da marcação firme do ritmo quaternário, as variações entre sustenidos e bemóis desafiavam nossos ouvidos e gargantas. Assim, a alegria era intensa quando a professora acenava afirmativamente para o tom correto. Do mesmo modo, a decepção frente a “cara feia” pela desafinação.

 Os treinos da fanfarra tinham início logo no retorno das aulas, em agosto. Tocar na fanfarra era para poucos (nunca consegui). Tambores, taróis e os outros instrumentos retumbavam, sempre em horários posteriores ao recreio (tais treinos, mais tarde, ocupariam os horários das aulas de educação física). Esses sons anunciavam, pela cidade, a presença da escola. Não demorava e já íamos todos para a marcha. Primeiro, no pátio da escola; depois, pelos quarteirões que a rodeavam. Os pelotões, organizados em quatro filas (ou cinco?), seguiam uma hierarquia. Alunos do 4º ano vinham à frente; na rabeira, os do 1º ano. Cada fila, em ordem de tamanho (sempre do maior para o menor). Cada pelotão, separado um do outro por um aluno ou aluna em destaque. E, sob a ordem um dois, um dois, esquerda, direita, esquerda, direita,tentávamos acertar o passo e não deixar a fila “arrebentar”…

 No dia Sete de Setembro, cedinho – o café da manhã reforçado, em casa – reuníamos no pátio da escola. Todos em uniforme de gala! O das meninas: saia azul marinho, pregueada, com um corpete; blusa de fustão branco, de manga comprida; sapato preto, meias e luvas brancas, boina azul marinho. Listras brancas, na gravatinha azul, indicavam a série escolar. O dos meninos: calça azul marinho, camisa e meias brancas, sapato preto, bem engraxado. Feita a formação treinada, a bandeira do Brasil era hasteada, enquanto cantávamos o hino nacional. Em seguida, saíamos pelo portão da escola, rumo ao local, ponto de partida da parada (a praça da catedral). Ali, naquele local, nosso entusiasmo inicial começava a arrefecer. Quanto discurso, que tédio! Quanta autoridade, que dor nas pernas!

O término dos dobrados da banda de música, dava o mote para a entrada das fanfarras, indicava o início da parada. Começava nossa exibição! Até chegar nossa vez – a das crianças pequenas – parecia um século. Íamos desfilando pela rua principal, enquanto as pessoas, dos passeios e das janelas, nos viam passar. Nossas professoras andavam para cima e para baixo, acertando nosso passo, consertando as filas entortadas, assegurando o destaque de cada pelotão, no desfile (nenhuma escola queria receber a pecha de “a pior”…). Não sei ao certo o tempo de duração desses eventos, na minha infância e adolescência. Era muito tempo! Ao final, estávamos todos irmanados numa só reclamação: que sol quente, que sede, que cansaço, que fome! Essa tradição – a da parada do Sete de Setembro – eu a vivenciei, como aluna, até a conclusão do curso Normal. Durante todo esse tempo, D. Pedro I era o herói nacional que, às margens do Ipiranga, dera o grito de independência do Brasil!

 ******

Como professora, passei a experimentar o outro lado das comemorações do Sete de Setembro. Nos anos iniciais da minha carreira, trabalhei em grupos escolares, regendo turmas de alunos pobres, via de regra. Crianças pequenas, muitas sem uniformes (estávamos sempre buscando doações), sem sapatos, de chinelos. A participação era obrigatória, não tínhamos escolha. Assim, além da peleja para disciplinar aqueles corpos em filas e ritmos, precisávamos providenciar recursos para fazê-los “apresentáveis” no desfile/exibição.

 No dia da Independência, as crianças chegavam cedo na escola. As cantineiras preparavam a merenda que iria prevenir possíveis desmaios, durante a parada. Além disso, substituíamos os chinelos por sapatos, ajeitávamos a roupa no corpo, penteávamos cabelos. Após a formação, seguíamos em direção ao distante local do encontro de todas as escolas. O ritual de discursos, hinos, banda de música, em nada foi diferente da minha infância. De novidade, os carros alegóricos e as balizas. Apesar de estar presente na organização dessas duas apresentações, meus alunos delas jamais participaram…

Quando rememoro esses desfiles, duas lembranças saltam à mente. Uma, o cansaço de andar para lá e para cá, tentando colocar ordem nas crianças sob minha responsabilidade. Outra, a tristeza pelo desprestígio evidenciado na baixa adesão do público: nas calçadas, poucas pessoas aguardavam nossa passagem. Novamente, durante todo o meu tempo como professora de crianças e adolescentes, devíamos a D. Pedro I, a honraria pela independência do Brasil, em sete de setembro de 1822!

 ********

Não sei bem quando foi que “descobri” o engodo do Sete de Setembro! Provavelmente, depois do curso de graduação. O sentimento misto de espanto inicial foi dando lugar à compreensão da história como a vida dos homens de carne e osso, e não, de heróis/deuses. As noções de invenção, tradição, apagamento, disputa e dominação foram algumas das chaves que destrancaram minha ignorância!

 ********

 Para Tarcísio Mauro Vago, pelo seu aniversário em 5 de setembro e a propósito do testemunho na live do Pensar a Educação ao Vivo, em 9 de setembro.


 

Imagem de destaque: Desfile de 7 de Setembro

  www.otc-certified-store.com https://zp-pdl.com/get-a-next-business-day-payday-loan.php https://zp-pdl.com/best-payday-loans.php https://zp-pdl.com/get-quick-online-payday-loan-now.php

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *