Eu vim de lá: relato de educadores musicais negros (Parte 1)

Isaac Luís
Coletivo Geral Infâncias

Negro drama
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura

Negro drama
Tenta ver e não vê nada
A não ser uma estrela
Longe, meio ofuscada…

(Mano Brown)

Durante muito tempo, eu tive a letra de uma música do Mano Brown  impressa na parede da sala da casa onde eu morava anos atrás. A música intitulada “Negro Drama” narra a vida de um garoto morador da periferia que alcança o sucesso através da música, por meio do Rap. Era por meio do Rap que o garoto encontrava refúgio contra a criminalidade, e no decorrer da canção ele critica a série de abandonos que sofreu pelo pai, pelo Estado, a discriminação racial, cultural e social, as dificuldades enfrentadas pela mãe para manter o sustento da casa e também as várias oportunidades ofertadas pelo crime.

Ter essa letra impressa na parede de minha casa era uma forma de sempre lembrar de onde eu vim, as experiências que tive, e principalmente para servir de combustível todos os dias me mostrando claramente que eu era sim, capaz de mudar a minha realidade e conseguir alcançar meus objetivos. Fosse por meio da música, da educação ou de alguma outra fonte de trabalho, eu estava determinado a romper com um ciclo de pobreza, de preconceito, de falta de oportunidades. Eu estava disposto a fazer o que fosse necessário para mudar o rumo de minha vida.

Mas, como eu poderia fazer isso? Por onde eu deveria começar? Quem eu conhecia que tivesse feito algo semelhante? E se desse errado, o que eu faria? Desde os primeiros anos da minha vida escolar eu sabia que este seria um percurso muito importante para que eu conseguisse realizar sonhos que extrapolavam a expectativa da minha realidade de garoto negro, pobre, periférico, morador de um país com um gigantesco fosso social marcado principalmente pelo recorte de raça.

E neste caminho de estudante fui acolhido por escolas, professoras e professores que com seu apoio, dedicação e investimento em uma atuação comprometida na escola pública, me fizeram desejar também ocupar o lugar de professor.

E foi assim que me formei em licenciatura em Música pela UFMG. Mas não sem passar por situações nas quais minha existência foi atacada, inclusive dentro da universidade, como no dia em que um professor fez uma “piadinha” numa sala de aula cheia de pessoas brancas referindo-se a um homem negro como “macacão e gorila”. Ou em uma festa de aniversário na qual uma mulher que eu nunca vi na vida me parabenizou pelo fato do meu filho ter o “cabelo bom, melhor” que o meu, e que se desse tudo certo daqui a duas gerações a minha descendência não seria de pessoas pretas.

Meu corpo preto é invadido pelos olhares, imaginários e até mesmo pelo toque numa sociedade que considera o corpo preto objeto desprovido de humanidade e subjetividade. É muito comum pessoas que nunca me viram me abordarem perguntando se meu cabelo é de verdade (dreads) ou se uso peruca, se eu lavo o cabelo, se fede muito. Sem contar quando pegam no meu cabelo sem pedir licença e dizem que é lindo, diferente, exótico. É simplesmente inacreditável as coisas que acontecem quando algumas pessoas se deparam com algo ou alguém  que não se enquadra no padrão hegemônico.

E eu ocupo lugares pouco comuns às pessoas negras e muito menos aos homens. Como educador musical trabalho em escolas de Educação Infantil há mais de 10 anos – espaços predominantemente ocupados pelas mulheres, em sua maioria, brancas. Considero minha presença nesses espaços, para além da importância do meu trabalho como professor de música, fundamental, visto que estou diante de sujeitos recém-chegados, em seus anos iniciais de vida e a eles, com a minha presença, busco mostrar que:

  • Pessoas pretas podem e devem ocupar diferentes lugares na sociedade, exercer diferentes profissões, não necessariamente em contextos de subalternidade como são os destinados a nós, população negra deste país.
  • Meu corpo, a cor da minha pele, meus cabelos também me constituem, e mesmo não fazendo parte dos padrões estéticos hegemônicos deve ser considerado, legitimado, naturalizado e respeitado em todos os lugares, podendo, inclusive, ser representativo para crianças negras que muitas vezes não se veem representadas.
  • Homens podem e devem cuidar, brincar, ser sensíveis e com a formação acadêmica e profissional necessária, porque não ocuparem espaços de formação, docência.

Capacitar-me para ocupar os lugares que eu quiser e romper com esta estrutura racista vigente em nossa sociedade é um dos meus objetivos e propósitos de vida. Ser referência para as crianças, assim como tive professoras que foram para mim referências faz parte do meu ser docente. E o desejo é que eu seja para elas o primeiro, ou um dos primeiros de muitos professores e professoras negros que farão parte de suas vidas.

Sobre o autor
Isaac Luís de Souza Santos é artista da Cia Pé de Moleque, licenciado em Música e Mestre em Educação Musical pela UFMG. Atua com formação de professores e há mais de dez anos como professor de música em escolas de Educação Infantil, e atendendo a pequenos grupos de musicalização em condomínios e praças da cidade de Belo Horizonte. Também é integrante do MOVMI (Movimento, Música e Infância). E-mail: isaac_flauta@yahoo.com.br. Instagram: @isaacluis_souza


Imagem de destaque: acervo pessoal do autor – Créditos Élcio Paraíso

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