O verbo na carne, o fogo na terra, a palavra fatal

Ivane Perotti

Madrugada fria. 13 de agosto de 2020. Minas Gerais. Quilombo Campo Grande. A terra recebe o choque dos passos teatralmente cadenciados: lição? A lei não se expressa no contexto da justiça social: inibe! Enche as bocas das inconsciências: tradição! Os barões nunca foram embora. Em não indo, agora retornam. A Escola Eduardo Galeano treme diante do esquadrão de execuções. Crianças choram, perdem-se, gritam. É guerra com munição para um único lado: violência! Entre os brotos do plantio que jamais se dará, as famílias caem. Os mais velhos rogam. Não há reza. Não há compaixão. Homens da “segurança” executam a desapropriação. Fogo. Fogo queimando o respeito. Fogo ardendo na contramão da luta pela vida. A escola vem ao chão. Um grande trator eriça os dentes de aço. Correm os moradores com livros no colo, carteiras e o quadro que servia às 450 famílias. Lágrimas do luto, lágrimas da perda de quem nada tem.

A névoa da madrugada, branca e fria, não esconde a vergonhosa cena. Escola, livros, crianças, famílias… tudo o que o estado deveria garantir. Não. Já sabemos que o tempo é de destruição. Homens armados atacam. Bombas explodem. Balas atingem. Filhos da Terra tombam. Corpos pisoteados. O som dos cassetetes sobre as armaduras ecoa na cena abismal. Reprovável e vergonhosa cena. Violenta cena.  A ficção não permeia o contexto do Brasil atual. A terra rasgada, maculada, chora sangue. Chora o alimento tirado do útero comunitário. Chora a distância que separa os homens e as comidas nos pratos. Que pratos? Que lugares são esses de crimes amparados pela “covardia legal”? As provas históricas do povo massacrado rasgam o ventre da comunidade quilombola. Ventre telúrico. Ventre fertilizado pelo suor das mãos, pela alegria das crianças, as mesmas crianças que agora perdem-se na tentativa de fugir da violência orquestrada. Precisava disso?

Interesses orbitais movem homens e ratos. Ratos trazem a peste. Homens lucram com ela. Plantar a terra abandonada, ociosa, descartada é ilegal. Plantar para comer é ilegal. Morrer de fomes de alimento e de educação não é. Que lugar é este que executa os pobres, desassiste os necessitados e cria condições para os já milionários tornarem-se ainda mais ricos? Os mesmos que atingiram lucros acima de 100% em plena pandemia. Como o Brasil dorme enquanto os “seus” perecem em completa madrugada de COVID-19, no interior de Minas Gerais?

O fogo atende à ordem de despejo. As mãos dos trabalhadores da terra aparam as lágrimas da morte: arrancados, fenecem os pés de café, de milho… 23 anos de referência nos agronegócios da região são destruídos como se jamais tivessem estado ali. A terra coada, cuidada, regada, sangra e geme. Os sem-terra da terra em cultivo estão ao relento na madrugada fria. Choram. Assustados, pedem à lei pela lei. A lei, parcial, escondeu-se nas entrelinhas dos rogos. Estalou a sua língua bifurcada sobre o quilombo e fez-se instada.  Mandos e desmandos. Ideologia da destruição. A pandemia não esconde as catacumbas do poder.

Minas Gerais tutela a violência que a história não apagará. A opressão cria discípulos. Os trâmites ecoam funestos. Negam a vida, negam as memórias, negam o trabalho, invadem as construções, desabrigam as famílias. É a marcha de decisões ultrajantes em desalinho com a vida, com o respeito, com o direito à subsistência.

O país cresce em desvarios e mortes. A corrupção derrama-se em praça pública e o poderio capitalista esfrega-se, pujante, na cara do povo. Nenhuma ponte racional pende entre as decisões que assolam as vidas, as mentes, as formações. Esse é o projeto apresentado em 2018, com início de execução em 2019 e em destacado crescimento.

Quem somos nós para dormir na madrugada de 13 de agosto de 2020? Quem sou eu para continuar adormecendo enquanto aquelas crianças, assustadas, com frio, perdem a casa, a escola, a comida e… resistem?

Envergonho-me das tagarelices vomitadas sobre a cabeça do povo. Envergonho-me das arbitrariedades consagradas nacionalmente. Entristeço-me diante da morte da razão, da morte das gentes, do extermínio da ciência. A madrugada fria no interior de Minas Gerais é apenas mais um de tantos absurdos que não recebem punição.

A indignação cresceu por todo o mundo. A covardia aportou em terras estrangeiras. Pena, pena mesmo este texto não ser mais um jogo da ficção. E por ser um anúncio do fato, desejaria perguntar aos executores: vocês dormem?

Ao Quilombo Campo Grande, uma pausa para se reerguer. Os homens não são donos da Terra: pertencem a ela, por enquanto.


Imagem de destaque: Ação de despejo no Quilombo Campo Grande/MG. 14/08/2020. Foto: MST

 

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