Aborto: dúvidas e questões

Mauro Passos*

Eis a diferença:

os que, antes, morriam de fome

passaram a morrer por falta de comida.

(Taberneiro Tuzébio/ Mia Couto)

É comum ouvir dizer que, em dúvida, se deve priorizar a vida que representa um bem maior – o que, em alguns contextos, constitui uma escolha delicada e difícil. Exemplo: no Brasil pratica-se, anualmente, um sem-número de abortos mal assistidos, que custam milhares de vida. Estatisticamente, esse número é grande. Traduz muitas questões, problemas e silêncios. O que pensar sobre o número de pessoas, inclusive crianças, que morrem de fome diariamente? E o número de seres humanos que vivem abaixo da linha da pobreza? Tal situação desafia a exigência ética e merece intervenção do Estado e das Igrejas.

A primeira forma de socorro parece ser a criação de “Comitês Pró-Vida”, para que o problema seja enfrentado com meios humanitários – ou seja, da forma mais ética, moral e humanitária possível. A pergunta inicial seria: é possível decidir que uma vida humana tenha mais valor que outra? Ou será que todas têm o mesmo valor e merecem igual tratamento? Seja como for, é preciso salvar o maior número possível de vidas. O problema é legalizar ou não o aborto? Em suma, basta se trancar em uma questão?  A globalização é uma injustiça institucionalizada. É um dogma internacional.

Mas há outras razões contra o aborto: a) com ele, matar-se-ia quem tem direito de continuar vivo; b) constituiria uma injustiça, pois é mais fácil privar de um direito do que respeitá-lo; c) requer-se uma legislação que beneficie a vida, inclusive em sua forma mais frágil. E, no caso de abortos, o capricho da irresponsabilidade incidiria sobre o destino de inúmeras vidas potencialmente humanas.

A ética exige, até prioritariamente, que se invistam cuidados e dinheiro na vida humana, sobretudo naquela forma, que, como dito acima, é a mais frágil e promissora. Isso significa investir em prevenção – como se faz com o fumo, drogas, bebida e obesidade. No caso do aborto, é preciso prevenir a gravidez irresponsável, abusiva e/ou imposta – o que exige todo um trabalho preventivo. Mas solucionar todos os casos de gravidez irresponsável é impossível; seria o caso de escolher um mal menor?

O Estado tem o dever de fornecer a assistência básica de forma eficiente, devendo as instituições religiosas alertar quanto à dimensão ética do problema e sugerir programas de prevenção. Diante da complexidade do problema – educação, exploração, desigualdade social, mídia – há situações em que a moral deve preferir que se escolha, entre os males, o menor, para assim tornar mais eficiente a prevenção. Pois, além de um dever do Estado, reside aí um direito do cidadão.

Pergunta: em caso de aborto, quem poderia definir, categoricamente, o que vem a ser o melhor para outros? Em questões controversas, membros da instituição religiosa têm o direito de cultivar ideias fixas e impô-las? Não conviria, antes, ouvir – quanto à complexidade do fato – as pessoas envolvidas no episódio, para só então emitir uma opinião? Se, em princípio, temos de ser contra o aborto, não poderia haver exceções? Nem todos os envolvidos nessa questão – pai, mãe, médico – gostariam de fazer o aborto por prazer ou ganha-pão. O grande mérito do atual papa é convidar toda a Igreja a reformar-se. A ser uma “Igreja em saída”.

Por que as mulheres teriam de tremer de vergonha ou culpa ao se lembrarem de que, no passado, pensaram em abortar? Teriam de ser pessoas de outro mundo? Ser-lhes-ia vedado terem sentimentos comuns? E mais: padre/pastor/bispo, médico ou jurista poderiam arrogar-se o direito de falar em nome delas ou contra elas, com segurança catedrática? Basta conhecer as leis para saber julgar? Não seria melhor enfronhar-se, modestamente, no mistério das relações humanas, sofridas e ameaçadoras? Por que enquadrar as mães, genérica e globalmente, na mesma bitola? Não julgueis…

E então, como se posicionar em caso de estupro? Como tomar uma posição no caso da “menina estuprada pelo tio e grávida aos dez anos de idade”? “E agora, José”? Basta a lei? A solução é submeter-se à moral dos homens da hierarquia eclesiástica? Mas, quem poderá se apresentar como justo juiz? Os líderes religiosos não deveriam ter grande sensibilidade frente ao drama desse sofrimento humano, particularmente dessa criança? Ou será que não devem nada a ninguém, só imposições e proibições categóricas? Compaixão, nem pensar – porque sabem das “coisas”? Frente a relações humanas, continuam analfabetos? Quem sabe, seu estilo de vida empobrece ou até castra sua sensibilidade; e os outros, então, é que não passam de algozes. Religião é um lugar de encontro com Deus no cotidiano da vida.

Além de outros fatores, reina entre nós uma grande injustiça social e falta educação básica, favorecendo desequilíbrios nas relações familiares e sociais. Estejamos atentos – deixar esse problema à margem da lei agrava o mesmo. É o que tem acontecido com o aborto. De modo selvagem, o radicalismo moralista das instituições agrava o problema, porque o deixa desamparado. O mero legalismo ignora a dimensão social do problema e não leva a sério milhares de mortes desnecessárias. O discurso religioso também ignora esse aspecto e apenas pincela normas e deveres. Em geral, há um evidente farisaísmo: o poder público simplesmente proíbe e pune; as instituições religiosas condenam e excomungam, sem nenhuma proposta de solução, exceto a proibição. Uma vez mais, o peso dos mandamentos (O Decálogo do Antigo Testamento) interessa mais do que as Bem-aventuranças. Basta pôr as pessoas no Index. A verdade não está em um só centro – chega de todo canto. É conquista.

É fundamental mostrar-se capaz de discernir as circunstâncias. Tudo e todos não passam de “coisa”? Para boa orientação, basta a lei? No catolicismo, por exemplo, a proibição é a única resposta? Não passa por nossa cabeça que todos somos, de alguma forma, assassinos e suicidas por nosso jeito defeituoso de lidar com a vida, os fatos e as pessoas? O drama alheio não nos atinge, a não ser como transgressão da lei; nem um conselho é preciso dar? Basta uma ordem, uma condenação? É sempre bom lembrar que: “A Palavra abriga o princípio” (João 1, 1).

Felizes os que respeitam leis justas e têm na compaixão a força motriz de seu comportamento. Felizes os que não impõem a outros um peso que doutores e líderes religiosos não querem mover nem com um dedo! Feliz quem assume a fragilidade da condição humana e, em dúvida, busca no diálogo uma luz para suas decisões.

 

*Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Doutor em Ciências da Educação pela UniversitàPontificia Salesiana de Roma (UPS)

Pós-doutorado em Antropologia da Religião pela UFMG

Presidente do Cehila (Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina/ Cehila-Brasil)


Imagem de destaque: Marco Bianchetti / Unsplash

 

 

 

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