Lágrimas abertas – de fomes, de guerras, de tudo

Ivane Laurete Perotti

Tão grossas que esmagam a pele. Tão densas que lacram olhos e bocas. Lágrimas de consciências tardias. Inconsciências despedaçando ossos. Grotescas fontes de abandono projetado.

Por que choram? – pergunta a Razão. 

De tudo muito. – respondem.

Não compreendo. – redarguiu a primeira – Subjetivações?

Modelagens. Modelagens é a resposta foucaultiana. Narrativas. Historicidade. Relações de poder.

Organização do cotidiano. Práticas sociais.

Então, por que choram? – desprovida de paciências, a Razão investe – Choram tempos?

Presentes. Esses tantos. Todos ao mesmo tempo.

Camadas? – a inquietude da Razão obriga colóquios. 

Lágrimas brotam pelas distorções e distopias. Choramos as velocidades que nos consomem. A superficialidade das relações. Guerras abertas. Batalhas escusas. Mortes. Fomes. Ignorâncias. Tudo muito!

Pretextos!  – irrita-se aquela que não é neutra – Até eu sofro a ação das convenções. Emancipem-se, crianças  políticas.  

Neste contexto histórico, choramos resistências. Vulnerabilidades. As formas de controle avançam lugares. Tomam-nos de assalto. Às vésperas.  As linguagens, campo de batalha, sucumbem em minas semânticas. Multiplicam-se os assujeitamentos. Choramos as mortes da identidade. Múltiplas. Complexas. Implicadas em desgovernados jogos de poder. A realidade que percebemos  e nos dá a perceber não nos significa. 

Na penumbra do diálogo, uma voz se ergue:

— E se essas lágrimas carregarem sementes? Re-existências? Se estivermos a chorar lutas esquecidas?

Hum!? – resmungou a Razão.

Talvez, cada lágrima nos conecte ao eco de vozes silenciadas. Ao grito de memórias resistidas. Às identidades mortas. Pisadas e repisadas pelos modos de controle.

Poético…Quase!

Choramos por um futuro que teimamos em desejar. Por narrativas sem amarras. Por infâncias protegidas. Amadurecimentos políticos. Discursos abertos. Choramos em resistência ao que está.

A Razão, que se exaurira em provocações, hesita.

— Lágrimas como ferramentas. Fermento de luta.

Nos espelhos quebrados da sociedade, o reflexo de um desejo insubmisso: ser, além do imposto. Cobrado. Exigido. Ser, além de existir. Viver, além da sobrevivência diária. Reinventar as linguagens. Vozear o inominável. Romper a trama de convenções.

Então, choramos para criar um canto de resistência.  Cada lágrima, um ato de coragem. Uma reivindicação.

A Razão, desarmada, observa. Compreende que as lágrimas não são fragilidade, mas potência. Nos espaços de uma realidade construída, brotam novas possibilidades.

Choramos. De tudo muito. Também de esperança.

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