Papo Cabelo: conectando educação, cultura e identidade em uma comunidade de Belo Horizonte

Thais Ferreira Dutra

Tania Mara Ferreira Pereira

A experiência que iremos relatar neste texto refere-se a um projeto construído e vivenciado em um local de imenso afeto. Compartilhar um projeto de sociedade mais justo e igualitário com aqueles que nutrimos amor é, por si só, um ato revolucionário. Quando a relação entre mãe e filha ultrapassa o espaço familiar e ganha vida através do anseio de ambas por uma educação libertadora, os frutos colhidos são muitos. Esperamos que esse relato os encontre em um lugar tão potente quanto foi para nós. 

O Projeto “Papo Cabelo” foi uma experiência realizada em uma escola municipal de Belo Horizonte, situada na região do Confisco. Nessa escola, a grande maioria dos estudantes eram negros e a questão racial, atrelada à baixa autoestima de meninas e meninos, era latente. Xingamentos, brigas, violência verbal e até física eram atitudes comuns e normalizadas pela cultura da baixa autoestima dessas crianças e adolescentes. Dizer apenas “não façam isso”, “se respeitem”, dentro do espaço escolar, não bastava e não surtia nenhum efeito. 

Educadores perceberam que muitas das falas ofensivas das crianças e adolescentes diziam respeito à aparência física e à noção distorcida de beleza, quase sempre atrelada aos atributos do padrão branco e europeu. Pensando nisso, educadores propuseram ouvir os estudantes em rodas de conversas intituladas de “Papo Cabelo”. Os encontros aconteciam de forma semanal, com cerca de 20 estudantes por vez. A participação das crianças e adolescentes era livre e sempre contava com um ou mais educadores negros que falavam sobre suas experiências com seus cabelos cacheados e crespos e sobre estética e cultura preta. Além disso, eram oferecidas oficinas de diversos penteados e orientações acerca de cuidados básicos com os cabelos. 

Duas estudantes, irmãs, negras, de 9 e 12 anos, que frequentavam o projeto, viveram uma experiência que mobilizou os educadores. As duas irmãs tinham os cabelos trançados com tranças box braids e um dia, sozinhas em casa, na ânsia de tirar as tranças, arrancaram os próprios cabelos, aos chumaços. Envergonhadas, as irmãs começaram a ir às aulas usando lenços e toucas, apesar do calor extremo. Recusaram-se a mostrar a cabeça e a falar sobre o ocorrido. 

Com muito cuidado e carinho, duas educadoras negras conseguiram conversar com as meninas e convencê-las a mostrar suas cabeças. A situação não era boa: parte dos cabelos arrancados, parte ainda permanecia trançada e havia diversas feridas, devido a agressão sofrida pelo couro cabeludo. Por certo, eram meninas machucadas física e emocionalmente. 

O que se viu em seguida foi a mobilização de toda uma comunidade em torno das meninas. Uma educadora conseguiu uma médica dermatologista para tratar as feridas e a infecção. Um salão de beleza negra doou atendimento personalizado às meninas, que foram atendidas com todo carinho, em um espaço não só de beleza, mas de apropriação do ser mulher e negra.  As meninas retornaram à escola, com a autoestima renovada e com o sentimento de que foram verdadeiramente acolhidas pela escola.

A experiência vivenciada por essas meninas, somada ao trabalho sensível dos educadores, transformou o Papo Cabelo em um espaço de acolhimento, informação e de reverberação da cultura e da identidade negra. A escola se transformou em um espaço onde os corpos negros são vistos como suporte para construção de uma identidade positiva. Em uma sociedade onde meninas e meninos negros crescem acreditando que seus cabelos são um problema, torna-se primordial que a escola possa ser um espaço de ressignificação cultural e de reverberação do bem viver de crianças e adolescentes negros. 

1 comentário em “Papo Cabelo: conectando educação, cultura e identidade em uma comunidade de Belo Horizonte”

  1. THAIS RAYANE MURTA CARDOSO

    O Projeto “Papo Cabelo” mostra como a educação pode ser um meio poderoso de transformação social e pessoal. A abordagem sensível e inclusiva do projeto é inspiradora. Parabéns pela escrita clara e envolvente que transmite a importância desse trabalho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *