Educação Física Decolonial, para além da Lei 11.645/08

Tiago Tristão Artero

Para pensar em uma Educação Física Decolonial é necessário entender a própria pedagogia e estrutura social. Compreender a existência do racismo ambiental, que atinge os corpos que foram vulnerabilizados nas periferias, dos que vivem integrados às matas e às águas.

Para contribuir na construção de pedagogias decoloniais, já há exemplos, num movimento de contra-hegemonia, como nas escolas zapatistas no México, na educação promovida pelo MST e pelas escolas indígenas – mas não só nessas, até porque educação é algo mais amplo do que a contida nas escolas.

Não há por que separar corpo/mente, matéria/espírito, humano/animal, vida sagrada/vida profana, indivíduo/natureza. Mas estamos sendo ensinados nesta dualidade, de que somos superiores e que o outro (até o outro humano) é nosso adversário ou passível de ser explorado. Os brancos/bandeirantes, chamados de maloqueiros (porque destruíram as malocas) não se conformaram com o modo coletivo de vida e moradia dos povos originários.

Numa tentativa de “desenvolver os corpos” as epistemologias eurocentradas decidiram que tinham o direito de subjugar a natureza e separar-se dela, não reconhecendo mais que são formados por ela, dela são parte e a ela retornarão – o que mais seremos, que não um adubo e uma concentração de carbono que dará as bases para a próxima goiabeira ou, quem sabe uma rocha?

Não é exclusividade dos jogos e esportes europeus (ou inspirados nestes) a competitividade e a formação de equipes, no entanto, a mercantilização das práticas e a dualidade intelectual/corporal se manifesta de maneira intensa na colonização ainda hoje em andamento.

Mas, o que podemos aprender com os povos que, mesmo oprimidos, formam nossa sociedade brasileira e ainda resistem nas comunidades indígenas, quilombolas, coletivos (e outras formas de organização)?

Ainda que a hegemonia das elites se manifeste nos currículos escolares, no que se considera legítimo em termos de práticas sociais, na coerção exercida pelo poder estatal, na hostilidade dos que concordam com o individualismo, com o genocídio e os processos de aculturação, muitos saberes podem ser apontados, pois foram mantidos – com muita luta e resistência.

Em relação aos corpos, a integração com a cultura que resiste se manifesta nas danças, nos rituais e no cotidiano dos que ainda mantiveram/conquistaram/retomaram seus territórios.

Se nos atentarmos, perceberemos nossos corpos colonizados nas vestes, nos movimentos, nas possibilidades, afastados de suas próprias possibilidades de conhecimento, de prazer e integração com a própria natureza (meio ambiente).

Podemos pensar nos corpos para além da instrumentalização… da preparação para um esporte, para a guerra, para o trabalho braçal alienado.

Será o desenvolvimento da motricidade inclui a percepção do quanto o tônus muscular tem que ser regulado para que a subida em uma alta árvore se dê sem exaustão muscular ou para que o equilíbrio dinâmico se ajuste ao movimento do pássaro que será abatido com a flecha? Sem falar do cheiro, da percepção do vento e do prazer do sabor envolvido nestas ações que envolvem o físico de maneira ampliada.

A capoeira, em sua biomecânica, apresenta muitos elementos dos povos da África, para cá traficados, numa ‘mistura’ de referências de danças e de técnicas de luta, atrelados a um momento histórico de luta por liberdade e de festa tipicamente brasileira. E tantas são as capoeiras, quanto a diversidade manifestada nos bairros e cidades onde os escravizados se encontravam – quando não nas senzalas, onde os movimentos, com a flexão mais intensa dos membros inferiores era necessária.

A dança do tambor de jongo, em suas origens africanas do povo bantu e praticado também no Brasil confundia e dava medo nos brancos/brancas que, isolados(as) em sua casa grande, titubeavam ao ver a alegria das negras e negros que, descalços, sorriam mais do que qualquer um das festas da aristocracia. O samba carioca pode ter se originado dessa inspiração… daí a explicação de que gringas e gringos loiros não conseguem soltar o quadril… talvez seja uma vingança da própria vibração do tambor, que reconhece quem oprimiu os povos e culturas dos negros e negras.

Tanto para a caça, quanto para a coleta, praticada por povos africanos e indígenas, a educação física era cotidiana e intimamente relacionada com a vivência. Não era alienada, nem mesmo alienante, já que estava condicionada com a observação, iniciação gradual e integração dos mais velhos/velhas com as/os mais novas/novos. Nem a mais refinada das pesquisas cartesianas dariam conta de realizar a interdisciplinaridade entre os conhecimentos necessários para esta atividade – matemática, física, geografia, climatologia, filosofia, química, nutrição, biologia… educação física. Isso nos provoca a entender, ainda mais, a movimentação em roda na prática do je’i e o contexto das lutas agarradas huka huka, idjassú, em vez de nos rendermos ao wrestling.

Advogo aqui a importância de que nossos currículos não sejam mais eurocentrados, de que, mais do que valer a Lei 11.645/08, os saberes/a ciência dos povos sirvam de ponto de partida para novas organizações institucionais e sociais. Que o conhecimento oral (e também escrito) dos  povos oprimidos sejam elevados a um grau que permita repensar o mal viver criado pelo sistema e buscar o Bem Viver contido nas Epistemologias do Sul (indicados por Boaventura Santos), nas explanações de Daniel Munduruku e Ailton Krenak. Atualmente, estes saberes do sul, tradicionais, são tensionados (pela única versão eurocentrista de ciência) para que os povos tenham vergonha de manifestá-los. Isso faz parte do projeto de dominação apontado por Quijano, quando diz da colonialidade do poder.

Para romper com a padronização dos corpos, comportamentos e adoecimento proposital das mentes é necessário buscar uma Educação Física que faça repensar a cultura corporal e, mais do que isso, a própria noção de corpo e de indissociabilidade com a natureza.

Por isso, entendê-la para além das amarras do capital significa notar que ela está presente, também, na manutenção das agroflorestas, nas bioconstruções, nas rotinas dos que não passam o dia a mercê do consumismo.

É preciso conceber uma Educação Física que seja cooperativa, mas que a coletividade indicada por esta esteja mais ao lado do Bem Viver do que interessada em reproduzir nos jogos e esportes os mecanismos excludentes do sistema. No lugar de congressos técnicos, podemos começar a escrever uma nova biografia corporal natural, se assim quisermos.


Imagem de destaque: Omar Freire/ Imprensa MG

 

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