Por Luciano Mendes de Faria Filho
Há uma representação amplamente disseminada socialmente de que a masculinidade é naturalmente violenta e que, portanto, os homens são perigosos. Tal representação encontra eco e é realimentada cotidianamente por homens e mulheres no conjunto do mundo social. As estatísticas sobre as violências de homens contra mulheres, dos crimes praticados por adolescentes e jovens masculinos e os atos de extrema perversidade praticados pelos 33 homens que covardemente estupraram uma menina no Rio de Janeiro essa semana são exemplos chocantes, mas, nem por isso, excepcionais disso.
Se, por um lado, avançamos na construção de um arcabouço jurídico e na constituição de vários coletivos que buscam combater e punir quaisquer práticas violentas e, no caso em questão, práticas de violência fundadas nas desigualdades de gênero, por outro lado, a não distinção das masculinidades possíveis e a concentração apenas naquela falocêntrica ,e patriarcal acaba por nos enredar a todos na mesma história e, no cotidiano, tem sido difícil combater e evitar os estereótipos e as práticas de violência masculina.
A pressão pública pela punição exemplar daqueles que comentem tais atos é de fundamental importância, mas está longe de resolver a questão. Pouco adiantará punirmos os sujeitos violentos hoje se continuarmos formando, desde crianças, homens e mulheres que naturalizam a violência masculina e têm dificuldade de afirmar e viver outras masculinidades, mais cuidadosas e solidárias e não violentas.
A condenação do estupro coletivo de que foi vítima a garota carioca mobiliza a indignação pública mas não parece encontrar eco nas propostas políticas de amplos setores sociais e mesmo do poder público. Nesse sentido, não é possível deixar de associar o episódio à mobilização de grupos conservadores contra o que chamam de ideologia de gênero e, mais recentemente, à audiência concedida pelo Ministro da Educação do governo Provisório ao ator Alexandre Frota.
Sob o manto e a fumaça do combate ao que chamam de “ideologia de gênero”, amplos grupos sociais, notadamente religiosos, liderados por aqueles senhores brancos e misóginos que deram aquele horroroso espetáculo do dia 17 de abril no momento de votação do impedimento da Presidenta e que ocupam o governo Provisório do Temer, estão defendendo a continuidade das relações desiguais entre homens e mulheres. Essa legitimação da desigualdade, base de toda a violência, é continuamente contada e cantada em verso e prosa que defendem, entre outras coisas, que lugar de mulher é no recato do lar. Se, irresponsavelmente, elas saíram desse lugar, devem estar preparadas para enfrentar a natural violência masculina que marca o espaço público. Não é essa uma das faces de legitimação do assédio de todo tipo vivido pelas mulheres quando ousam “sair de casa”?
Do mesmo modo, quando o Ministro da Educação, que já declarou rezar na cartilha do combate à igualdade de gênero, recebe um personagem como Alexandre Frota para conversar sobre educação, nada mais está do que reforçando e dando um caráter de apoio público a essas práticas que queremos combater e punir. Não simplesmente por ele ser um ator pornô, mas por assumir publicamente em várias ocasiões ter estuprado mulheres e por ter contra si um histórico de denúncias de outras violências cometidas contra mulheres.
Mas, infelizmente, não é apenas nessas manifestações públicas de desapreço à igualdade entre homens e mulheres e à possibilidade de experiências de masculinidades e de feminilidades múltiplas que a violência masculina é legitimada e reproduzida. Isso também ocorre no universo escolar, como mostram inúmeros estudos. Das muitas expressões desse fenômeno no mundo da escola, gostaria de ressaltar uma que, a meu ver, é pouco refletida por todos nós: a ausência de homens na Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental.
Como sabemos, desde pelo menos o final do século XIX, o magistério primário veio se constituindo numa profissão eminentemente feminina. As razões para isso são muitas e não cabe aqui retomá-las. Mas uma delas foi justamente a construção de uma representação de que o magistério não era lugar para homens já que estes seriam violentos e seriam, ao contrário das mulheres, avessos a uma prática escolar marcada pelo cuidado com a criança conforme vinha defendendo o pensamento pedagógico e sendo institucionalizado pela legislação escolar. Nesse sentido, muito se disse naquele momento, e em muito outros, e se diz até hoje, que os homens que se dedicam ao magistério primário e à Educação Infantil é porque não são “homens de verdade”.
Em que pese o fato de, mesmo na escola sob a responsabilidade feminina, a falta de cuidado com as crianças e a violência contra os alunos ser uma realidade que marca a história da escolarização, essa representação naturalizante do cuidado feminino e da violência masculina é algo ainda muito mobilizado no cotidiano escolar. Acompanhando a experiência de vários colegas homens que decidiram se dedicar profissionalmente ao cuidado e à educação das crianças na Educação Infantil, é notável a luta que têm que travar contra pais e mães e, sobretudo, suas colegas de profissão, para continuarem na sala de aula. Não apenas as famílias temem e não aceitam um homem cuidando e educando suas crianças, sobretudo se se trata de meninas, mas também as professoras legitimam essa postura dos pais.
A mesma experiência se repete quando pergunto às minhas alunas da Pedagogia se elas deixariam homens cuidar e educar suas filhas e seus filhos no ambiente escolar. Mesmo sabendo que o curso de Pedagogia tem a função precípua a formação de profissionais da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a maioria das alunas diz, às vezes com certa vergonha, que não gostaria da presença masculina junto de seus filhos e filhas, ainda que em instituição pública de ensino.
Numa sociedade que até mesmo os/as profissionais da educação não se perguntam sobre o significado, para as crianças, da ausência masculina no cuidado e na educação de nossas crianças, como construir escolas e práticas educativas que favoreçam o desenvolvimento de masculinidades cuidadosas e que defendam a igualdade de gênero? Se o compartilhamento do cuidado e da educação das crianças pequenas no espaço público não tem possibilitado às nossas crianças, meninos e meninas, o encontro com homens cuidadosos, como esperar que elas desenvolvam, no ambiente escolar, novos conceitos e sensibilidades acerca das relações entre homens e mulheres?
A única forma de fazermos com que acontecimentos como o do Rio de Janeiro sejam coisa do passado e a desfaçatez de um Ministro de Estado que recebe uma figura como Alexandre Frota em audiência para discutir coisas da educação não seja societariamente tolerada, é nos engajando. E, nesse engajamento, lugar fundamental tem que ser ocupado por nós, homens, na revisão das formas de construção e expressão de nossas masculinidades e na criação de condições para que as novas gerações possam fazer isso de forma muito mais tranquila, rica, plural e expressiva do que hoje conseguimos fazer.
Ps: Para o aprofundamento de algumas das questões expostas neste texto sugiro a leitura do número 34 da Revista Pagu, organizado pela profa. Marília Carvalho, da USP, e por mim, que trata do tema A educação das Masculinidades.