CL -Nº 80 – 30/04/2015

Ano III – Edição 080 / quinta-feira, 30 de abril de 2015 

Um texto

Eliane Marta Teixeira Lopes

“Malogramos sempre ao falar do que amamos…” só com essa frase posso me absolver de estar há vários dias tentando compor um texto e não conseguir. Ao longo de trinta e dois anos uma convivência profissional, uma amizade fraterna, conivências às vezes além, às vezes aquém da conta, uma medida certa, impossibilitam-me de falar/escrever sobre a música que nos acompanha, sobre a literatura que nos inspira, sobre Belo Horizonte que nos enquadra, sobre as famílias que nos guardam, sobre os amados que nos aguardam.

Leio então seu Memorial. Nele – naquele momento – prestou contas:  o que fez foi ultrapassado na escrita, no texto, contando por que fez, para que fez e como fez.

(…) ato acadêmico que agora pratico – último passo na carreira do magistério universitário – (…)

Sequer vislumbrava, pois ponto indefinível e deformado pela compreensão prematura, que o último passo estava por vir, esse que dá agora. Da mesma maneira que antes: Publicamente andando.

(…) ingressei na vida universitária, é verdade, por uma oportunidade eventual, mas nela permaneci por escolha consciente e decisão segura.

Não houve decreto, nem medida provisória que espantasse ou, mais, que se interpusesse nisto que sempre soube serem as suas decisões: conscientes e seguras. E jogando o jogo que jogou durante longos curtos-anos tomou a decisão de ex-gressar.

(…) , e só na vida universitária poderia encontrar – e encontrei – campo para viver (e sofrer) integralmente minha contradição: o inconformismo com a realidade social que busca expressão na crítica, e o compromisso com a prática social, que obriga à ação, dentro dessa mesma realidade que se critica. Mais que local de trabalho, mais que realização de um projeto profissional, pois, a Universidade foi e tem sido, para mim, a realização de um projeto de vida, provavelmente impossível fora dela. Mas a opção pela vida universitária implica aceitação das regras do jogo.(…)

Contradição que está presente agora – quero ir, quero ficar – ; inconformismo que sempre esteve como professora, como mulher, como cidadã. Suavemente. Exceto nos momentos em que “dá uma de João Líbano”,  republicano ferrenho e defensor ardoroso da liberdade e da racionalidade humanas – homem que ensinava a menina de 4, 5 anos a cantar a Marselhesa. A aceitação de regras e, ao mesmo tempo, o amor à liberdade, que encontraria expressão em Fernando Pessoa … não me peguem pelo braço… Aceitação da diferença e do outro em uma paciência aprendida de um “professor universitário profundamente sensível aos problemas sociais e voltado para a busca de soluções” e a muito mais que isto.

Vou lendo sua Travessia, seu risco em espiral: plantou e pouco arrancou (mesmo que pense que sim); não é mais a mesma, nunca mudou.  Apenas queria mais. Caleidoscópio que é sempre o mesmo visto de longe, de lado, de frente, de costas, mas que a quem olha dentro oferece fragmentos coloridos, cambiantes imagens de cores variegadas, em sucessão rápida estonteante.

…da área de Letras para a área de educação; de uma visão psicológica do ensino, para uma visão sociológica, que quase nega a anterior; de uma concepção da escola como instrumento de correção das desigualdades sociais, para uma concepção antagônica, pelo reconhecimento da escola como instrumento de dissimulação dessas desigualdades – são alguns exemplos.

Apenas queria mais. Os significantes, mesmo que em outra combinação, continuaram todos a formar laços: escola, ensino, letras, educação,  correção,  desigualdades sociais,  dissimulação. Outros, decorrentes, se somaram: alfabetização, leitura, escrita, linguagem… história+s. Desdobramentos e decorrências.

No nosso primeiro contato, naquele mês de março já longínquo, na nossa primeira aula – vocês se lembram? –

Eu me lembro. Não estava entre os formandos destinatários do discurso, mas fui convocada pelo texto, pela data do texto, a me lembrar e me lembrei. Lembro-me agora. Procuro-me/nos no passado e outrem e/nos vejo (…) Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. É… o brilho do olho. Era assim que era. Seus olhos brilhavam muito verdes, os nossos também brilhavam, havia uma luta se desenrolando à nossa porta, dentro de nós – éramos jovens.

Dias a fio, aulas às sextas-feiras(?), quatro horas seguidas e muitas leituras. Ali  não aprendi o que se dizia ser didática. Diferente de outras, não sabia antes de começar, e o que se via ali não era – oh! não era: di-dá-ti-ca. Mas aprendi uma professora. Pra bem e pra mal. Pra bem fui ser uma, pra mal quis ser igual. Ou é o inverso? Wallace, Pierre Furter, Brameld, outros. Alguns buscávamos na Livraria Científica, outros na Livraria Atalaia, ou na Livraria do Estudante, os “em espanhol” chegavam-nos às mãos pelas do Sr. Eguinoa que nos corredores da Fafich descobria as incorrigíveis devoradoras e as seduzia com planos de pagamento não só suaves, mas constantes: entre poucas outras, nós. Ali, na sala de aula, ecoava o que fora não se podia gritar. Cumplicidades fraternas, políticas, amorosas, intelectuais; fuga de colega em porta-malas insuspeito; longas vigílias à espera de notícias de prisões, de abortos, de libertações, de quedas de aparelhos, de virgindades abolidas. Ali exercíamos o trabalho de transformar ideais e sonhos em projetos; fazíamos das salas, dos corredores, das nossas casas, espaços de discussões democráticas; a reforma universitária foi discutida, o currículo de pedagogia foi internacionalmente concebido e discutido, Pierre Furter, Angel Marques, Maria Angeles Galino: poderíamos todos fazer da educação a salvação deste país e, de quebra, nossa redenção… assim havíamos aprendido. Não daria certo; como se sabe, a educação não salva. Pode, no máximo, educar.

Sob a insígnia da instituição se escondia e crescia o que seria o nosso texto favorito: as notas, dó, ré, mi e as outras; as letras o a, o bê e as outras. Nele, nesse texto, nunca fizemos duo para violino e piano, mas compartilhamos afinidades e preferências. Para o piano, três intérpretes favoritos. Podemos falar de um. A língua toca o céu da boca e repete mais um ene para obter o efeito de sino em árvores de Natal: Glenn. Glenn Gould. Como foi que começou? de uma paixão só se sabe que é depois que está instalada e aí já perdemos o princípio: não se entra numa paixão como se entra num cinema. Suas interpretações que não eram apenas para tocar sentimentos, mas a inteligência, – você já ouviu o “seu” Chopin? e o Mozart então? -, gravações, biografia. Afinal, o olho não perdeu o brilho. Paixão pela decifração.

Nautas em várias incursões e de vários prefixos, missivistas antes, internautas agora, e-mails dão conta das notícias diárias – já escutou? ouviu dizer? já leu? (esse livro do Ítalo Calvino é uma das minhas paixões, já li várias vezes, a cada vez é uma nova descoberta – que horror que nunca falei sobre ele com você!) e de outras coragens – entre nous.

Os livros foram muitos, as leituras só um pouco menos.

Que outros se jactem das páginas que escreveram;

a mim me orgulham as que tenho lido.

Não fui um filólogo,

não inquiri as declinações, os modos, a penosa

mutação das letras,

o de que se endurece em te,

a equivalência de ge e do ka,

mas ao largo de meus anos professei

a paixão da linguagem.

Minhas noites estão cheias de Virgílio;

ter sabido e ter esquecido o latim

é uma possessão, porque o esquecimento

é uma das formas da memória, seu vago porão,

a outra cara secreta da moeda.

Quando em meus olhos se diluíram

as vãs aparências amadas,

os rostos e a página,

dei-me ao estudo da linguagem de ferro

que usaram meus ancestrais para cantar

solidões e espadas,

e agora, através de sete séculos,

desde a Última Thule,

tua voz me alcança, Snorri  Sturluson.

O jovem, ante o livro, impõe-se uma disciplina exata

e o faz em busca de um conhecimento exato;

a meus anos, toda empresa é uma aventura

que linda com a noite.

Não acabarei de decifrar as antigas línguas do Norte,

não fundirei as mãos ávidas no ouro de Sigurd;

a tarefa que empreendo é ilimitada

e há de acompanhar-me até o fim,

não menos misteriosa que o universo

e que eu, o aprendiz.

(Um Leitor  –  Borges) 

Tudo continua assim, paixão pelo saber, pelo desconhecido; tudo acaba em poesia ou em ópera. Concertos.

À Magda, “como um elogio (como aquele que o poeta von Schober e o músico Schubert dirigiram “À Música”) e como uma dedicatória”.

Belo Horizonte, 18 de agosto de 1998.

Pela terceira vez a uma mulher, no dia cinco de maio de 2015, o CNPq entrega à Professora Doutora Magda Becker Soares o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia, instituído em 1981, que vem sendo atribuído ao pesquisador que tenha se destacado pela realização de obra científica ou tecnológica de reconhecido valor para o progresso da sua área. Ao longo de seu tempo de docência em escolas e na Universidade Federal de Minas Gerais, cada um de nós, de sua área, reconhecemos o valor de suas palavras, ideias e gestos para a educação brasileira. Ouvimos todos, várias vezes que ela disse que nasceu incumbida e para esses não há descanso. Seu trabalho cotidiano pela independência, autonomia e possibilidades das camadas populares, sem descanso ou alívio, coloca-nos de frente com esses desafios, e não nos deixa esquecer que a língua e a linguagem são políticas. 

Na entrega do prêmio à Professora Maria da Conceição Tavares o ministro de C&T disse: Não existe pesquisa sem educação. Mas, cá entre nós, a Professora Magda não nos dá trégua: não existe educação sem pesquisa. De alguma forma.

Belo Horizonte, 24 de abril de 2015. 

P.S.: Enquanto o vídeo com a entrega do prêmio Almirante Álvaro Alberto à Professora Magda não vai ao ar, assistam à esse da entrega à Professora Maria da Conceição Tavares.

https://www.youtube.com/watch?v=qOvbFngvmoU

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