CL – Nº 78 – 17/04/2015

Informativo semanal do projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil – 1822/2022”

Ano III – Edição 078 / sexta-feira, 17 de abril de 2015

As universidades  e o regime militar. Cultura política brasileira e a modernização autoritária, de Rodrigo Patto Sá Motta

Alessandra Schuele

Por dever de ofício, na tarefa de preparar o programa de ensino e atualizar a bibliografia da disciplina História da Educação Brasileira, a qual ministro neste semestre no curso de graduação em Pedagogia da UFF, me deparei com o denso e necessário livro do historiador Rodrigo Patto Sá Motta. As universidades e o regime militar é obra que resulta de pesquisa árdua e minuciosa, realizada pelo autor por longos seis anos, em acervos e arquivos nacionais e estrangeiros. A investigação incluiu ainda a leitura de uma vasta bibliografia de referência sobre a problemática das políticas educacionais para o ensino superior em tempos de ditadura-civil militar.

O principal propósito do livro é o de compreender como se combinaram e/ou se chocaram as reformas modernizadoras do ensino superior e as políticas autoritárias e conservadoras, que caracterizaram os governos militares nas suas conjunturas diversas entre os anos de 1964 e os anos iniciais da década de 1980, período marcado pela gradual distensão e as medidas de “abertura democrática”. 

Em evidência, como não poderia deixar de ser, ao longo de oito capítulos, encontram-se análises criteriosas sobre as intervenções nas reitorias de várias universidades do país ; as práticas de investigação e expurgos de lideranças, estudantes e docentes envolvidos no movimento estudantil e nos grupos de esquerda, realizadas pelos governos militares; os ciclos repressivos , intensificados com os decretos de controle e repressão à resistência e à ação política nos espaços universitários; a espionagem e a “operação limpeza” ocorridos em vários campi, especialmente a partir do Ato Institucional número I5; as estratégias de adesão, resistência e acomodação da comunidade acadêmica e científica sob o influxo da cultura política e das relações com os governos autoritários; o papel do Ministério da Educação na condução das primeiras medidas que desencadearam o debate público e as reformas de modernização conservadora; a influência estrangeira, notadamente os chamados acordos MEC-USAID e a ingerência norte-americana na educação brasileira; os resultados, os problemas, os limites e o legado da Reforma Universitária e da modernização autoritária no sistema de ensino superior brasileiro.

Rodrigo Patto Sá Motta demonstrou com riqueza de detalhes os paradoxos e as ambiguidades do regime militar na sua tensa e contraditória relação com as universidades. O ensino superior era considerado área estratégica fundamental para os regimes militares, especialmente no que se refere aos objetivos de fomentar o desenvolvimento tecnológico e científico, embasado pela ideia de modernização, progresso econômico e pela crença na ideologia do capital humano.  Do ponto de vista político, o ensino superior também representou área de risco e vigilância permanentes pelos sucessivos governos dos generais, por serem as universidades espaços férteis de intensa mobilização política estudantil e docente, nos quais circularam e cresceram heterogêneos movimentos de contestação política e cultural, genericamente associados pelos governos militares à suposta esquerda “comunista” (mas que, na verdade, possuíam filiações ideológicas e práticas políticas diversas).

De fato, a experiência autoritária daqueles anos foi marcada pela complexidade, apresentando, simultaneamente, as facetas destrutivas e construtivas das políticas implementadas pela ditadura civil-militar para o ensino superior. Nas palavras do autor, o ímpeto destrutivo resultou no autoritarismo e na violência repressiva contra professores e estudantes, alguns dos quais submetidos à tortura e levados à morte, acusados de subversão e prática de crimes contra a segurança nacional. Em outro sentido, as consequências construtivas da política universitária, com impacto duradouro observado pela comunidade acadêmica até os dias atuais, foram as profundas reformas administrativas ocorridas nas universidades. Desde à organização da estrutura departamental ao fomento do sistema de pós-graduação, passando pelas mudanças no acesso (vestibular) e na carreira docente (com o fim do sistema de cátedras e a progressiva construção do regime jurídico de dedicação exclusiva e a consequente integração entre as funções de ensino, pesquisa, extensão e gestão), as medidas dos governos militares permitiram a modernização, a expansão e o crescimento da estrutura universitária no país. Para tanto, no processo de construção das leis e decretos que culminaram na Reforma Universitária de 1968, os governos militares souberam dialogar, embora sob a dialética da repressão, do controle e da abertura de uma margem de negociação, com as demandas dos movimentos estudantis e docentes, assim como aproveitaram de práticas e modelos de organização universitária preexistentes em instituições brasileiras.

A política universitária foi fruto de um desenho produzido no processo histórico, no qual não havia muita clareza e nenhuma homogeneidade nos que se refere à definição de rumos a tomar. Resultou do choque entre grupos divergentes, com a pressão incansável do movimento estudantil e docente e com a apropriação de ideias gestadas por lideranças diversas no pré-1964. A Reforma Universitária de 1968 foi “o efeito paradoxal de pressões contrárias, de liberais, conservadores, militares, religiosos, intelectuais (e professores universitários), a que se somaram os “conselhos” de assessores e diplomatas norte-americanos, tendo como cenário a rebeldia estudantil.” (Motta, 2014, p. 8). O autor nos mostra como, apesar das divergências, a direita, representada pelos militares e seus grupos civis de apoio, e a esquerda, caracterizada pela defesa de perspectivas e doutrinas político-ideológicas heterogêneas (das mais moderadas às mais radicais), convergiram num aspecto fundamental no tocante ao ensino superior: a ideia de que era preciso modernizar para a produção de mais conhecimento científico e tecnológico. Os movimentos estudantis, os docentes e os intelectuais de esquerda, no entanto, acrescentaram a esta pauta a defesa das finalidades socialistas e revolucionárias para o ensino superior, que deveria atuar para a erradicação das desigualdades sociais e pela transformação da sociedade, inclusive com a ruptura da própria estrutura de poder interna às universidades. Evidentemente, a radicalidade desta pauta não coincidiu com as diretrizes dos governos militares e nem com a construção ideológica dos objetivos da sua perspectiva de reforma universitária, os quais se embasavam nos argumentos de desenvolvimento econômico, modernização, racionalidade e eficiência da máquina pública, com ênfase no ensino e na pesquisa voltados ao progresso técnico e tecnológico do país. Algumas vertentes mais radicais à direita chegaram a questionar a gratuidade do sistema e o caráter público e estatal da própria universidade, defendendo-se a cobrança de taxas e mensalidades aos estudantes que pudessem arcar com os custos.

Ao trazer para o debate as contradições e as ambiguidades da política universitária dos governos ditatoriais pós-1964, Rodrigo Patto Sá Motta defende a tese de que aspectos tradicionais da cultura política brasileira, especialmente presentes nos grupos dirigentes, se reproduziram durante o regime militar, com impacto evidente na relação deste com as universidades. Assim, a tendência à conciliação e à acomodação para evitar conflitos agudos, em meio a conjunturas de intensa repressão/resistência/contestação e violência (a face autoritária e destrutiva), associadas ao personalismo da política e o privilégio dos laços e afinidades pessoais em detrimento das normas universais (a troca de favores), marcaram a cultura política e a vida universitária no período. Para além da repressão autoritária e da violência legitimada pelo Estado, que não pode ser minimizada sob nenhum aspecto, as relações dos governos militares com a comunidade acadêmica e universitária foram caracterizadas por tensos jogos de acomodação e negociação, não se reduzindo à lógica binária da resistência versus colaboração:

“Sob o influxo da cultura política brasileira, os governos militares estabeleceram políticas ambíguas, conciliatórias, em que os paradoxos beiravam a contradição: demitir professores que depois eram convidados a voltar, para em seguida afastá-los novamente; invadir e ocupar universidades que ao mesmo tempo recebiam mais recursos; apreender livros subversivos, mas também permitir que fossem publicados e que circulassem. Como explicar o paradoxo de uma ditadura anticomunista que permitiu a contratação de professores marxistas e manteve comunistas em seus cargos públicos, enquanto outros eram barrados e demitidos?” (Motta, 2014, p. 16)

A tese da modernização conservadora, já longa na tradição acadêmica que analisa as reformas no ensino superior no pós-1964, é ratificada pelo historiador. Segundo ele, no caso das universidades, ela implicou: racionalização de recursos, busca de eficiência, expansão de vagas e instituições, reorganização da carreira docente, criação de departamentos, fomento à pesquisa e à pós-graduação, reforço e expansão da iniciativa privada de ensino superior. Enfatizou a adoção de modelos universitários praticados nos países considerados desenvolvidos, em especial os Estados Unidos da América. A sua cara conservadora também foi evidente: no combate e na censura de ideias, pessoas, estudantes, docentes e grupos supostamente de esquerda, que representassem todo e qualquer “perigo” comunista ou de subversão da ordem e da segurança; na vigilância e nos sistemas de informação no interior da comunidade universitária; na censura à pesquisa, aos livros, às publicações; no controle e na subjugação dos movimentos estudantis e juvenis; na criação de disciplinas dedicadas ao ensino de moral e civismo e de variadas tentativas de propagandear e difundir o projeto político autoritário e conservador dos governos militares.

As faces, simultaneamente modernizadora, conservadora e autoritária da política universitária do pós-1964, bem como as estratégias de acomodação, negociação, adesão e as lutas de resistência e contestação no seio da comunidade acadêmica, constituem o processo histórico experimentado no Brasil, no tocante à relação entre os governos ditatoriais e as universidades. Conhecer detalhadamente esse processo histórico, por meio da leitura do livro de Rodrigo Patto Sá Motta, contribui para a compreensão do legado da Reforma Universitária de 1968, das permanências e das rupturas vividas no ensino superior brasileiro até os dias atuais.

Sem dúvida, a obra é leitura obrigatória não apenas para os historiadores da educação, educadores, gestores, formadores e estudantes, de vários níveis do ensino. O seu conhecimento fertiliza a formação crítica para o exercício da reflexão consciente sobre a nossa história e as tradições da cultura política, na tarefa, atual e urgentíssima, de ampliar e consolidar a democracia na sociedade brasileira. Tarefa que, aliás, fez parte da prática política e pedagógica de vários professores e estudantes que viveram naqueles duros tempos de ditadura civil-miitar. Um exemplo emocionante que podemos ler no livro As universidades e o regime militar é o do célebre e saudoso professor Antonio Cândido. Em suas aulas de Literatura, na Universidade de São Paulo, ele costumava fazer da docência um instrumento permanente de resistência e reflexão críticas. Um dos poemas que analisava em seu cotidiano de ensino, de Emílio Moura, nos faz lembrar o quão importante, e premente, é a consolidação da liberdade civil e política, em nosso cotidiano e em nosso país.

“Quando a luz desaparecer de todo
mergulharei em mim mesmo e te procurarei lá dentro.
A beleza é eterna.
A poesia é eterna.
A liberdade é eterna.
Elas subsistem apesar de tudo.

É inútil assassinar crianças. É inútil atirar aos cães os que de repente se rebelam e erguem a cabeça olímpica.

A beleza é eterna. A poesia é eterna. A liberdade é eterna.
Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida.

As horas passam, os homens caem,
A poesia fica.

Aproxima-te e escuta.
Há uma voz na noite!

Olha:
É uma luz na noite!”

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